Potencializado pela pandemia, Um Picasso marca retorno do Grupo Tapa aos palcos fora do online

Clara Carvalho e Sérgio Mastropasqua duelam nas peles de uma componente do regime nazista e do pintor Pablo Picasso em Um Picasso | Foto: Ronaldo Gutierrez

“Tá bem, gente, vamos parar por aqui”, a voz grave que ecoa do fundo da plateia do Teatro Aliança Francesa é do diretor carioca Eduardo Tolentino de Araújo, dando as coordenadas para o fim do ensaio corrido de Um Picasso, espetáculo estrelado por Clara Carvalho e Sérgio Mastropasqua que chega ao palco do Teatro Aliança Francesa a partir de hoje, 19, às 20h.

Tolentino interrompe a dupla de atores num dos momentos chave do espetáculo escrito pelo norte americano Jeffrey Hatcher, quando o pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973), então radicado na França, descobre que as obras que acabara de reconhecer para uma agente do ministério da propaganda nazista seriam queimados na presença de outros componentes do regime de Adolf Hitler (1889-1945).

Embora pertinente, a discussão nada tem a ver com a ação do grupo de artistas anônimos norte americano Fractal Studios, que, numa ação de leilão, queimou uma obra do pintor para vendê-la de maneira digital. 

“Sempre que você faz uma peça existe uma coisa no ar em relação a ela. Mesmo que seja uma peça comportamental, a história de um casal, por exemplo, vai haver alguma coisa na sociedade que se relacione a ela”, conceitua o diretor, que teve contato com o texto escrito em 2003 ainda em 2016, quando a portuguesa Companhia de Teatro de Braga o convidou para dirigir uma montagem do espetáculo que estreou em Portugal, foi para a Ucrânia e chegou a São Paulo em 2017 para duas únicas apresentações na programação de um festival de teatro lusófono no Sesc Ipiranga.

“Eu gostei do texto e a peça fez muito sucesso em Portugal. Ficou quatro, cinco anos no repertório deles, viajou, e como foram apenas duas apresentações em São Paulo, muita gente não teve a chance de ver em só um final de semana. Decidi montar aqui porque ela é muito pertinente na medida que avança na discussão sobre o sentido da arte em meio a uma crise, uma guerra, uma pandemia”, explica o diretor, que já tinha o espetáculo pronto e prestes a estrear em 2020 antes da pandemia do Coronavírus.

“É uma peça que fala de um estado de força. Por causa da guerra e da ocupação nazista na França a gente pergunta qual o estado de força diante disso? Nem é preciso fazer analogias diretas com os nosso tempos e nossos tanques peidorrentos”, graceja em referência ao desfile de tanques militares realizado em 10 de agosto como meio de apoio ao presidente Jair Messias Bolsonaro (Sem Partido).

“O que temos na cabeça de chave é um produto do sistema. Temos um tenente imbecil nos governando, e ele representa uma ala do pensamento brasileiro”, analisa. “Eu faço teatro há 42 anos, e não vejo nesse país uma política cultural. Ela é feita por quem pratica e não por quem governa. Quem estabelece uma política cultural no Brasil são os agentes, os que fazem: os pintores, escritores, compositores, atores. Nós vamos continuar e retomar nossa vida desse jeito, mas não vejo uma estruturação cultural. Se o país não pensa no meio ambiente, na saúde, na educação, não vai pensar na cultura. Seria muito ingênuo a gente acreditar nisso”.

“O que eu vejo de discussão  de política cultural no Brasil é a política de balcão, que é para onde a verba vai, e vejo isso há muitos anos. Agora vai para a arte sacra. Mas não vejo um pensamento estruturante do país. Então não acho que vá ser um mar de rosas se isso acabar, tomara que acabe, mas é difícil dançar nos escombros”, acredita o diretor. Produtor e ator que dá vida a Picasso, Mastropasqua vai além:

“Não é tão visível, principalmente para o público. Nós encontramos um caminho, mas o público precisa ser orientado, e não é só um público, são vários, diversos tipos de teatro. Precisamos de um movimento de representatividade para os espaços periféricos, mas isso tem que ter uma convivência, sabe? Às vezes é uma coisa nula porque é uma luta por recursos, e eu não sei qual o hábito das pessoas. Não sei se esse enclausuramento necessário pode mudar e se a gente consegue esquecer o desagradável, se vai ter gente nova, gente que nunca teve acesso, não arrisco prognósticos”, diz o ator.

Mastropasqua, contudo, aponta para o fato de, a despeito da nulidade da política cultural, ainda há a questão de um não interesse generalizado do público. “O que eu sei é que, na realidade, a relação do teatro com o público, não é em geral de pessoas se matando para assistir. Não sei como vai ser, se mudou o fundamento da atenção. O quanto essa atenção está em se deslocar, sentar e não ser ativa? Estamos com a atenção onde não se exige muito, você pode circular rapidamente por conteúdos. É multifatorial, não tem um fator que vai dizer para o público ir ou não ir”, analisa.

“E ainda tem o fato de estarmos fazendo algo que muita gente não concorda. Para muitas pessoas não devíamos abrir os teatros, e tudo bem, eles também têm razão”, diz Clara Carvalho, que acredita que a peça tenha, de alguma forma, se beneficiado deste tempo de espera.

“Nós estávamos quase estreando quando paramos. Retomamos agora e a peça ganhou uma dimensão mais intensa do que ela tinha, porque se falava sobre o valor da arte e qual o poder que ela tem nessa briga. Naquela época, na Alemanha, já se descobria o poder destrutivo da guerra, e foi o que descobrimos nestes últimos anos aqui também, então ganhou-se uma dramaticidade, uma verdade, uma oportunidade, sabe?”, analisa.

“A peça fala sobre esse momento de extrema direitização que o mundo adotou agora, e com todas as ambiguidades. Essa personagem que faço, por exemplo, é de uma ambiguidade completa, porque serve a um regime no qual ela não acredita. ela e o contrário disso tudo, mas ela faz o que manda, ela cumpre a função dela ali dentro. Ela não tem nem nome, a face dela está apagada e isso é muito tocante”, finaliza a atriz.

Um Picasso fica em cartaz até o dia 26 de setembro, com sessões de quinta-feira a domingo, às 20h (quinta a sábado) e às 17h (domingo). Os ingressos custam de R$ 20,00 (meia) a R$ 40,00 (inteira) às quintas e sextas-feiras, e de R$ 30,00 (meia) a R$ 60,00 (inteira) aos sábados e domingos.

O espetáculo não será transmitido online e não haverá venda de ingressos na bilheteria (apenas venda antecipada via site).

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