Pedra fundamental do teatro nacional contemporâneo, Gota D’ Água se tornou um clássico instantâneo desde sua estreia, em 1976. Com texto de Paulo Pontes (baseado na tragédia Medéi, de Sófocles) e canções compostas por Chico Buarque de Hollanda, o espetáculo entrou para o hall como um dos trabalhos mais marcantes da carreira da cantora e atriz Bibi Ferreira, intérprete original da sofrida Joana, abandonada pelo marido Jasão e expulsa de sua casa por Creonte, dono do conjunto habitacional onde vive.
Por sua importância e status de clássico, é quase improvável imaginar que apenas três montagens sucederam a catártica estreia. A primeira, em 2007, sob a direção de João Falcão, acirrou temas como o abismo social entre Joana e Creonte e a diferença econômica. Na pele de Joana, Izabella Bicalho conseguiu um desempenho consagrador que a pôs no primeiro time das grandes atrizes do teatro musical brasileiro.
Quase dez anos depois, o diretor Rafael Gomes recontou o clássico numa versão enxuta, com apenas dois atores e o subtítulo A Seco, jogando luz, essencialmente, sobre a relação entre Joana e Jasão, adicionando temas do cancioneiro de Chico Buarque e dando ênfase ao romance intenso e fracassado do casal.
Na pele da injustiçada Joana, Laila Garin também conseguiu um de seus melhores desempenhos em cena, confirmando a ascensão de sua estrela – acesa desde a consagração em Elis – A Musical.
Agora, a obra ressurge sob um novo epiteto: Preta. Sob a direção de Jé Oliveira, versão do clássico busca jogar luz em questões sociais mais profundas do que a montagem de 2007.
Conectando as personagens com suas raízes negras, evidenciadas pela classe social e sua ligação com religiões de matizes africanas, a nova montagem conta com um elenco majoritariamente negro e uma adaptação contemporânea que une a poesia de Buarque e Pontes a citações de memes e um novo repertorio musical.
Abre-se um diálogo da obra com temas do funk e do rap nacional popularizados nas últimas duas décadas, com ênfase em citações de grupos e artistas como Racionais MC’s e MC Bin Laden, entre outros expoentes dos gêneros.
Mesmo temas originários do espetáculo como Flor da Idade e a canção título, e outros ligados ao cancioneiro de Buarque, como Cálice e Deus lhe Pague, ganham novos contornos sob a direção musical de William Guedes e Jé Oliveira. Em cena, as intervenções do DJ Tano buscam atualizar o discurso do texto e das canções para estabelecer a ponte social pretendida pela direção.
E talvez seja esse o ponto que não deixa a encenação (de excessivas 3h40min) decolar. Jé Oliveira busca exaltar, em sua adaptação, um diálogo social já presente e disseminado nos versos originais, demonstrando uma leitura repetitiva da obra.
As tintas maniqueístas pintadas em personagens como Alma e Creonte impedem as leituras dúbias propostas pela obra. Na pele do próprio Jasão – que abandona a esposa pela ascensão social de se casar com a filha do rico Creonte –, Oliveira busca uma construção de tonalidade farsesca, flertando com uma malandragem bufona que deixa a desejar em momentos de maior densidade dramática – como seu embate com Joana, que poderia ser catártico, mas perde força.
A encenação se recente da falta de uma adaptação e uma direção que pode os excessos que a fazem soar cansativa. Faltou, por exemplo, critério na seleção do elenco irregular. Se Marina Esteves e Aysha Nascimento conseguem excelentes desempenhos nas peles de Alma e Corina, respectivamente, Rodrigo Mercadante e Salloma Salomão oscilam nas construções de Mestre Egeu e Creonte.
Faltou aos atores a força combativa das duas personagens. Força essa que também não se faz presente na Joana de Juçara Marçal. Nome de destaque na cena da musica indie paulistana, a cantora entrega uma interpretação fraca e pouco envolvente. Não fica crível a força da personagem que, em meio ao desespero e a sede de vingança, mata os próprios filhos e se mata.
O fato é queGota D‘Água (Preta) tem excelente premissa, mas se perde nas ambições de uma adaptação que não faz a obra sair de seu lugar comum, principalmente por unir direção e elenco que, no todo, soam irregulares, resultando aquém do que poderia ser.
SERVIÇO:
Gota D‘ Água (Preta)
Data: 10 a 12 de maio (sexta a domingo)
Local: Auditório do Ibirapuera – São Paulo (SP)
Endereço: Av. Pedro Álvares Cabral, s/n – Portão 2 do Parque Ibirapuera Horário: 20h (sexta e sábado); 19h (domingo)
Preço do ingresso: R$ 15,00 (meia) a R$ 30,00 (inteira)
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