Peça explora caminhos menos tortuosos em encenação de fôlego de Harold Pinter

O Inoportuno | Foto: Guga Melgar

Autor inglês considerado um dos principais expoentes do movimento do chamado teatro do absurdo que surgiu em meados da década de 1950, Harold Pinter guarda em sua obra alguns dos mais contundentes títulos do gênero, como O Quarto, Festa de Aniversário e Feliz Aniversário, nos quais explorou com mais intensidade a estética absurda celebrada pelos dramaturgos Eugéne Ionesco e Samuel Beckett.

Contudo, foi fundindo a estética do realismo com o absurdo que Pinter consegui seu primeiro grande êxito comercial e de crítica. Em The Caretaker (O Zelador, em tradução livre), o dramaturgo inglês usou da estética realista para expor a temática absurda que permeia sua obra mais popular.

No enredo, Aston divide o apartamento com seu irmão mais novo Mick, e leva para dentro do imóvel Daves, um velho mendigo que vai se habituando ao local e precisa lidar com as estranhezas e peculiaridades dos dois irmãos enquanto busca por um par de sapatos para que possa reaver seus documentos em uma cidade distante.

Originalmente encenado no Brasil em 1964 com o título de O Inoportuno, o espetáculo levanta questionamentos e busca discutir temas como a segregação racial, a miséria humana, a política manicomial e uma série de outras temáticas sociais alinhadas a persona de seu autor.

Em cartaz desde 02 de agosto no Teatro Raul Cortez, em São Paulo, a nova montagem de “O Inoportuno” sob a direção de Ary Coslov, compreende todos os pilares da obra de Pinter, e não apenas as expande como também adiciona um grau de certa delicadeza trágica a encenação.

Protagonizado pelo trio formado André Junquera, Well Aguiar e Daniel Dantas, o espetáculo sublinha na encenação o realismo de um quarto repleto de lixo acumulado e discute, através do texto, temáticas que se revelam cada vez mais próximas ao Brasil contemporâneo.

Na crise econômica que quase vitimou o maltrapilho Daves, Daniel Dantas encontra a chave para entregar em cena um de seus melhores trabalhos. Na pele do velho mendigo, Dantas dosa o tom de uma personagem que poderia facilmente soar caricata, e constrói um Daves frágil e friccionado, com uma delicadeza realmente tocante.

O ator aproveita bem as bases (bem) construídas por seus colegas de cena, e entrega uma interpretação calcada na construção de um homem que pode ser lido à beira da senilidade, e serve e figura para discutir a segregação racial e a crise econômica, além da miséria.

Na pele do perturbado Aston, André Junqueira peca apenas quando busca o alívio cômico de uma personagem que ganha ares picarescos, sem jamais perder sua tragédia de vista. O monólogo em que narra a internação e os abusos manicomiais merecem mais atenção para que a tensão não se perca frente a uma plateia pronta para o riso.

Welll Aguiar, por outro lado, faz justamente deste perigo sua mola propulsora na construção de seu Mick, personagem por si só maniqueísta que ganha ares de galã canastra no porte do ator.

Mérito, principalmente, da direção de Coslov que, em pleno diálogo com o bom cenário de Marcos Flaksman e o delicado desenho de luz do mago Paulo César Medeiros, foge a qualquer registro histriônico, e aposta numa construção de fato naturalista, mesmo nos diálogos que geralmente pendem para a linguagem absurda.

Em cartaz até o dia 29 de setembro, O Inoportuno é boa viagem ao universo de Harold Pinter com facilitadores que jamais se prestam ao simplismo. É encenação feita para comunicar, e isso vale muito.

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SERVIÇO:

Data: 02 de agosto a 29 de setembro (de sexta-feira a domingo)

Local: Teatro Raul Cortez – São Paulo (SP)

Endereço: R. Dr. Plínio Barreto, 285 – Bela Vista (dentro do prédio da Fecomércio)

Horário: 21h30 (sextas); 21h (sábados); 19h (domingos)

Preço do ingresso: R$ 45,00 (meia) a R$0,00 (inteira)

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