Apoiado em caráter intimista, Fóssil dribla armadilhas e se impõe como encenação de peso poético e informativo

Fóssil - Foto: Ronaldo Gutierrez

Quando entrou em contato com a realidade de mulheres soldado no front da guerra contra o Estado Islâmico para defender seu território materno, o Curdistão, a atriz Natália Gonsales iniciou processo de desenvolvimento do projeto que teria como principal mote apresentar ao Brasil a história destas figuras tão interessantes quanto controversas.

Na realidade destas personagens, mais que a guerra e o instinto de sobrevivência, o que as move é a implantação de um novo regime democrático, no qual homens e mulheres governam com a mesma importância, e deixando claras as necessidades de ações sócio-políticas baseadas na igualdade social.

Fóssil, resultado das pesquisas intensas realizadas pela atriz e pela dramaturga Marina Corazza, cumpre o papel almejado por Gonsales, ao apresentar a história de toda uma sociedade baseada nestas mulheres e em sua luta pela emancipação de gênero e política.

O espetáculo, que cumpriu bem sucedida temporada na Sala Multiuso do Sesc Pompéia, narra o encontro entre Ana, uma cineasta que busca recursos para a realização de um filme sobre a luta destas mulheres curdas, e Luís, o presidente de uma empresa de gás que aceita patrocinar o projeto da jovem.

Tensionando questões ligadas ao embate geracional, as relações estabelecidas pelo tempo e a memória da ditadura militar, Fóssil propõe um diálogo direto com o público, construindo pontes que geram o imediato reconhecimento.

Auxiliada pelo caráter intimista da sala em que estreou, o espetáculo resulta tocante e informativo sem jamais adquirir tom professoral, ponto mais que positivo da (excelente) dramaturgia de Corazza, que percorre caminhos nada tortuosos a fim de elucidar questões sobre uma cultura tão ignorada por um país subdesenvolvido e de franca influência norte americana como o Brasil.

Corazza não ambienta a história dentro da cultura Curda, mas a usa como mote propulsor das tensões protagonizadas pelas duas personagens. Gonsales divide a cena com Nelson Baskerville, que, na pele do empresário Luís, constrói uma persona carismática, que ganha o público com rara facilidade.

Gonsales, na pele da cineasta Ana, tem, por sua vez, um trabalho hercúleo ao tentar estabelecer uma ligação direta com o público. Não fosse Gonsales a experiente atriz que é, talvez não conseguisse defender com tamanho brilho esta que talvez seja sua personagem mais desafiadora.

Mérito também da (ótima) direção de Sandra Corveloni, que aposta numa encenação de tom naturalista, mas se apoiando no intimismo do teatro contemporâneo. Sua marca – a junção do cinema com o teatro – surge na cenografia de Carol Bucek, envolta em imagens exibidas através do videografismo da dupla André Grynwask e Pri Argoud, do Um Cafofo, que propõe a ligação da peça com o cinema – sensação sublinhada pelo excelente desenho de luz de Aline Santini e pela trilha de Marcelo Pellegrini.

Com nova temporada já anunciada para março no Teatro da Aliança Francesa, na República, zona central da capital, Fóssil enfrentará agora o desafio de transpor para um palco e uma sala maiores a intimidade e a ligação com o público que construiu ao longo de sua primeira (e inexplicavelmente curta) temporada.

SERVIÇO:

Espetáculo reestreia em 13 de março no Teatro Aliança Francesa.

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