Angélica Liddell – A toureira entre o sublime e a autoderrisão

Liebstod | Foto: Divulgação

Sem meias palavras, não poupa a si nem seu público na peça que estreou no Festival de Avignon. Isolda e o toureiro Juan Belmonte são seus parceiros poéticos.

A cortina se abre. Um homem maduro, moreno, grande, cabelos e barbas compridos e saia, sacerdote de um rito desconhecido, iluminado como num sonho. A cortina se fecha. E se abre novamente. O mesmo homem, outra cor, muitos gatos juntos – os bichanos vedetes do instagram? Numa próxima aparição, ele segura uma carcaça de boi. 

As primeiras imagens de Liebestod, de Angélica Liddell, nos tiram do conforto, de súbito. E a incongruência confunde nossa razão … para convocar outros sentidos? É possível ainda vermos algo novo da criadora? Ela mesma toma para si e explicita esta questão, que parece pairar, como fantasma, sobre a plateia – “o público está cansado de você, Angélica”. Liebestod e suas provocações ecoam na mente dias depois da experiência…

Agora temos uma cadeira e uma mesa com vinho. Em cena, a própria toureira-Angélica-Isolda. Juan Belmonte (toureiro mítico espanhol, nascido em Sevilha) e sua Tauromaquia se revelam como campo de diálogo poético da nova peça, a tourada como assunto e “exercício espiritual”. E também erótico, cheio de paixão, corpo, sangue, em constante conversa com a morte. Como almeja o teatro de Liddell. 

Angélica sentada – seu corpo e o vinho – oferece sua menstruação, uma masturbação, uma eucaristia feminina. “Asingara” de las Grecas soa alto e ela performa a letra e a intensidade da música pop – sem amor Angélica também não pode viver. E o amor, núcleo através do qual gira Liebestod – ou a morte de amor, ária final da Ópera de Wagner Tristão e Isolda – emerge como grande tema-ausência da ópera-teatro contemporânea da espanhola. O amor de Tristão e Isolda, o clássico?

 -“Não, Angélica você nunca vai poder fazer Isolda, você só fala de si mesmo” , ouvimos Angélica dizer a si mesmo. Mas compreendemos, um pouco na frente, que quem critica é Isolda, mito encarnado na Angélica. Diante dos olhos do mundo, o mito clássico humilha o mito Liddell contemporâneo, com frases como…

-“Não pode contar uma história que não seja tua? Falar de pais que não sejam teus? De amantes que não sejam teus? Diga-me a verdade, Angélica, não pode? Eu vou te explicar, deixa-me que te explique, eu vou responder. Fala de si mesmo para poder existir, porque tua vida, tua verdadeira vida, é uma merda. Se não escrevesse, não existiria, se deglute, se engole, e a merda que produz te dá a medida de sua existência fodida, um puto borrón de mierda sentimental.”

Temos agora, sem efeitos, crua, exposta, a autora e ré destas acusações que proferem contra si. Angélica é aquela que devora os pais, os amantes, “até os ossos”, com suas palavras e os utiliza em seu trabalho. Não precisa se preocupar com suas dores, um dia elas renderão teatro, textos, temas. “Você só faz isso tudo porque ninguém te ama”. “É uma puta velha e não conseguiu que ninguém te queira. E é esta a única e penosa razão porque escreve, porque atua, porque está aqui. 

Está aqui para receber o amor de todos esses desconhecidos… nunca será Isolda.” Aliás, tampouco conhece o amor: “Faz tudo isso para recordar o amor, carnal, que se dá entre um homem e uma mulher e que permite ver, no outro, o rosto de Deus” .

E neste rito de autoderrisão, “ mas não sentes vergonha, Angélica?”, a atriz-performer não só ridiculariza a si, mas a todo seu “público” e admiradores: “estás harta de escribir para mujeres y maricones”, repete várias vezes. Quisera ser lida por Ingmar Bergman, Steiner, Karajan, Buñuel, Gotard e Bresson e emocionar os “grandes pensadores e professores”, mas, em troca, tem que se conformar com um bando de entusiastas abobalhados: agrada aos medíocres. “Fãs de merda” que lhe atribuem o protagonismo de que carecem, imitadoras aos montes, sem talento, ridículas, como são ridículas as pessoas de teatro. 

Aliás, admite: entre um ser humano e um Caravaggio, salvaria o Caravaggio. E as pessoas sentem isso. A exposição de si continua, nada é mais poupado, não existem meios termos.

Mas … quem nada é, quem não precisa mais se preocupar em zelar por seu “nome” ou prestígio (responsabilidade com seu passado que, a certa altura, diz ter sufocado sua inspiração), pode dizer, sem meias palavras, que o rei está nu. O público de Avignon, que assistiu a este rito de humilhação e riu de Angélica, agora vai ouvir sobre si. 

Ela, que não poupou a si mesmo, está em condições de tocar na ferida de todos. Sua crítica é agora à cultura francesa, certa ideia de Europa  – um hiperdesenvolvimento frio, rançoso e burguês, preocupado com seus direitos, idiota e sem amor. Uma educação “racionalista abusiva”, “um país que sobrealimenta prepotências e orgulhos contra os místicos, eremitas e poetas”, ao mesmo tempo em que é obcecado pelo último Genet.

E que constrói um ambiente cultural tão medíocre e sufocante que é impossível haver um último Rimbaud, Baudelaire, Artaud, “porque os teatros de Paris só querem Sade sem Sade, Pasolini sem Pasolini, Henry Miller sem Henry Miller, Fassbinder sem Fassbinder”, etc… “Não há mais alienados e mais desesperados que em Paris.”

“Alguém virá e se aproveitará desta ausência atroz de razões para existir. Alguém se aproveitará da ausência de Deus. Pelo que toca, proponho uma teocracia. Não considero outra solução além da do espírito.”

A chuva de palavras, de pé, no microfone, termina. Agora Angélica se metamorfoseia, se fantasia da toureira que é. Nos propõe, diante de um touro – a masculinidade absoluta?- danças, gestos estranhos, a linguagem louca dos profetas, numa espécie de missa laica. Traz um corpo mutilado à cena, mais uma vez. A este homem dedica uma ternura ainda não vista na performance – ele recebe seu colo. E seu amor.

Viviane Dias é dramaturga, atriz, diretora. Uma das fundadoras da Estelar de Teatro. Doutoranda na ECA-USP, atualmente cursa um doutorado sanduíche na Sorbonne, na França.

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