Bom elenco dribla crítica rasa e encenação irregular de A Megera Domada

A Megera Domada | Foto: Heloísa Bortz

Encenada originalmente em 1594, A Megera Domada se tornou uma das comédias mais populares do repertório do bardo inglês William Shakespeare (1564-1616). Ainda que menos incensada frente a obras como Sonhos de uma Noite de Verão e A Tempestade, a narrativa sobre uma mulher de personalidade forte que é dada em casamento para se tornar submissa ganhou nova leitura ao ser reencenada em 1948, dentro da trama central de Kiss me Kate, musical de Bella Spewack (1899-1990) e Samuel Spewack (1899-1971) com canções de Cole Porter (1891-1964), que se tornou um dos maiores êxitos da Broadway clássica.

Na obra, uma companhia de teatro shakespeariano se prepara para encenar o clássico do bardo enquanto lida com o casal dono da companhia vivendo às turras e reeditando os embates de Catarina e Petruchio. O musical ergueu nova linha de interpretação para a comédia original, tecendo uma série de críticas à visão machista e alimentando o discurso do movimento sufragista do século anterior.

Ao longo das décadas, novas montagens de A Megera Domada sempre tomaram caminhos críticos à história de amor de Catarina e Petruchio. Em 1986, sob a direção de Benedito Corsi (1924-1996), a encenação estrelada por José Wilker (1944-2014) e Marília Pêra (1943-2015) subverteu o icônico solilóquio final, enquanto as montagens de 2000, estrelada por Marisa Orth sob a direção de Mauro Mendonça Filho, e de 2008, sob produção do Ornitorrinco, assumiram contornos irônicos para o malfadado romance.

Guardadas as devidas proporções, a nova montagem, que saiu de cartaz ontem, 02, após temporada no palco do Teatro Folha, em São Paulo, persegue justamente esse caráter crítico à comédia shakespeariana com inserções de uma visão contemporânea para as questões que cercam o texto.

Com tradução, adaptação e dramaturgia assinadas por Fábio Brandi Torres em parceria com Isser Korik (também autor da direção), a nova produção, contudo, jamais atinge a profundidade no mergulho proposto.

Ao longo de (excessivas) uma hora e meia de duração, o espetáculo estabelece discussão rasa e arrastada acerca de temas como misoginia, machismo e sexismo. Na obra, uma companhia de teatro se questiona acerca da possibilidade de uma nova montagem de A Megera Domada

Enquanto uma parte maciça da companhia acredita que o texto não seja o ideal para tempos modernos, o diretor e principal ator do grupo vê na obra uma forma de refletir sob a ótica do tempo o avanço ou não de pautas ligadas às mulheres e seu lugar na sociedade.

Embora promissora, a premissa se perde à medida que a montagem se desenvolve por tratar de questões como manterrupting, gaslighting e mansplaining de forma superficial. A adaptação do texto original ganha (bem vindo) ar farsesco que até emula alguma graça ao optar pela reconstrução das personagens dentro de estereótipos de gênero. 

O texto de Brandi Torres constrói com sagacidade os desenhos de personalidade de personagens como o próprio Petruchio, um típico paulistano com características que o universo das redes sociais se acostumou a chamar “hetero top”.

Contudo, se a ironia impressa na dramaturgia do autor dá a entender que a obra assumirá caminho farsesco, com a mesma crítica fina de montagens anteriores, a direção de Isser Korik toma rumo inverso. 

Faltou ao encenador olhar mais cuidadoso à obra, que resulta numa comédia de tom irregular e essencialmente sem graça. Ainda que algumas passagens realmente interessantes tenham se sobressaído – como o tom propositalmente tolo que Lisandra Cortez oferece à sua Bianca.

Inclusive, o ponto alto da montagem é, inegavelmente, o elenco que faz o que pode para preservar a graça proposta pela obra. Faltou à direção olhar menos raso à Catarina de Letícia Tomazella (que cresce ao assumir a personalidade submissa de sua megera em contrapartida ao tom monocórdio de seu registro original), entretanto, apesar das irregularidades, o grupo consegue bons momentos.

Eduardo Leão faz o que pode por suas personagens, enquanto Leonardo Miggiorin se comprova um dos atores mais versáteis de sua geração. O intérprete constrói um Petruchio de fato cativante, e faz deste um dos destaques da montagem, ao lado de Sérgio Rufino, que, na pele do criado Grúmio, angaria alguns dos momentos realmente engraçados da encenação.

Ainda que cresça na pele de seu elenco, A Megera Domada é obra que resulta irregular, seja pelo cenário idealizado por Paula de Paoli (dois cubos que emulam o interior das residências ou as portas das respectivas moradias), ou pelo desenho de luz também assinado por Korik, que nada faz pela encenação, senão marcar de forma truncada as transições das cenas.

Dos figurinos (Graziela Bastos) à maquiagem (Patrick Aguiar), nada funciona no espetáculo que, alicerçado no bom trabalho de um elenco que busca valorizar o caráter crítico e farsesco da proposta dramatúrgica, esbarra em encenação preguiçosa que faz de A Megera Domada uma comédia meramente sem graça.

SERVIÇO:

Este espetáculo está fora de cartaz

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