Buscando poesia na esperança, Amanhã eu Vou se alicerça no clássico em busca da delicadeza contra a barbárie

Amanhã eu Vou | Foto: Priscila Prade

Desde que a pandemia do Coronavírus tomou proporções avassaladoras ao redor do mundo como a maior crise sanitária em um século, uma série de espetáculos têm tentado traduzir o momento em cena. Com a crise política e a falta de perspectiva para uma resolução a médio prazo, textos e encenações têm, invariavelmente, sucumbido a desenvolvimentos prosaicos ou anacrônicos.

Amanhã eu Vou, peça de Clóvis Torres que estreou ontem, 19, em curtíssima temporada online, se joga neste desafio com um diferencial essencial para espetáculos passados: a obra não sucumbe. Narrando a convivência de duas mulheres, sobreviventes a uma peste que dizimou parte da humanidade, a peça dribla a armadilha do anacronismo ao se estruturar numa dramaturgia de tons clássicos.

Torres não se priva de inserções dramatúrgicas que ecoam obras clássicas, como Esperando Godot, de Samuel Beckett (1906-1989) e As Três Irmãs, de Anton Tchékhov (1860-1904), por exemplo. Entretanto a assinatura do dramaturgo se sobressai na construção tanto de seus diálogos quanto no traçado do perfil destas duas mulheres, uma que dorme e sonha com esperança a ponto de não reconhecer um pesadelo e espera pela primavera vindoura; outra que não dorme e tem noites inquietas e desesperançosas.

Na pele destas duas parceiras do apocalipse, Lilian Blanc e Tuna Dwek constróem afinado jogo cênico que não só valoriza o texto de Torres, como também eleva a obra a um status que dribla qualquer ranço de teatro filmado. A dupla tem troca precisa e generosa e não se priva de mergulhos menos seguros, principalmente quando a obra inicia investigações poéticas e lúdicas sem jamais se desconectar da linguagem realista.

Blanc opta por registro menos vivaz, sublinhando a incapacidade de viver no presente e a desesperança de um futuro vindouro. O tom cortante da personagem se reflete desde os movimentos pesados até o olhar profundamente desolador que a artista exprime em cena. Dwek, por sua vez, opta por registro mais leve em ótimo contraponto ao trabalho da colega. O tom delicado de sua personagem ecoa registro shakespeariano, construído nas mesmas bases de Blanc, mas com leveza que faz de sua personagem um arquétipo da poesia.

Amanhã eu Vou consegue fugir de construções enfadonhas, e aposta na comunicação direta com o público desde sua premissa até o desenvolvimento de enredo que não persegue um rebuscamento fútil. O diálogo seco valoriza desde o jogo das atrizes até a inserção da plateia num cenário em que não se permite a troca direta.

Mérito também da ótima direção assinada por Cristina Cavalcanti, que, inteligente, não busca inserir linguagem destoante no ímpeto de buscar o diálogo forçado com o contemporâneo. Cavalcanti, mesmo na edição de vídeo, se priva de sublinhar tanto a delicadeza quanto a poesia da proposta original do texto e da entrega de seu elenco.

A artista, que também assina o belíssimo cenário, insere singeleza num cenário de terra arrasada, quando o drama de um estado de sítio é substituído por discurso de esperança refletido também no vídeo, sem jamais apelar para chavões do gênero. Se junta a esta lista o (ótimo) desenho de luz de Rodrigo Menck, que consegue fato quase inédito nesta produção, de projetar uma luz que não perde sua essência na câmera e permite que funcione como a terceira personagem da obra.

A trilha seca de Igor Souza faz jus à obra e cresce à medida que o espetáculo toma contornos menos esperançosos, até seu desfecho tipicamente teatral, fazendo com que Amanhã eu Vou se sobressaia como bela obra de beleza plástica e dramatúrgica, valorizada tanto pela direção quanto por seu elenco sem precisar de grandes arroubos. É a fé na esperança e no que há de clássico no teatro.

SERVIÇO:

Data: 19 a 21 de março (sexta-feira a domingo)

Local: Plataforma Teatro

Horário: 17h; 20h

Preço do ingresso: Grátis

Os ingressos devem ser retirados no site oficial da Plataforma Teatro com salas sujeitas a lotação

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