Coletivo Comum promove erupção da necropolítica ao mergulhar no teatro documental digital em ótima peça

Os Grandes Vulcões | Foto: Liênio Medeiros

Em 2014, ao receber das mãos de Renata Sorrah o Prêmio Shell de Teatro na categoria Melhor Atriz por seu desempenho no espetáculo Morro como um País, da Cia. Kiwi de Teatro, a atriz e diretora carioca Fernanda Azevedo aproveitou a exposição e a temática da peça, na qual discutia as muitas formas de violência institucional e suas relações com os regimes ditatoriais (em especial com o vigente no Brasil entre 1964 e 1986), para lançar uma crítica a Shell, patrocinadora do evento.

A atriz leu as palavras do escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) ao citar declaração do presidente da petrolífera anglo-holandesa de que uma empresa precisava de um solo seguro para investir, e que as ditaduras seriam responsáveis por dar esta segurança e estabilidade.

É sintomático, portanto, que o episódio componha a dramaturgia construída em Os Grandes Vulcões, espetáculo que chega à rede na noite de hoje, 23, marcando a estreia da companhia no universo online. 

Assinada por Fernando Kinas (também responsável pela direção), a dramaturgia da obra se alicerça em Arte, Verdade e Política, mítico discurso lido pelo dramaturgo inglês Harold Pinter (1930-2008) em 2005, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.

No documento, Pinter falou sobre a estrutura de sua dramaturgia, a forma de composição de suas personagens, os mecanismos que davam início às peças, e destacou as críticas à política internacional praticada pelos Estados Unidos do período de governo de Jimmy Carter ao primeiro mandato de George W. Bush, de 1977 a  2005, citando casos como o patrocínio a grupos de rebeldes e oposicionistas ao partido socialista da Frente Sandinista de Libertação Nacional, na Nicarágua, em 1984, e a invasão do Iraque, em 2003, entre outros, além do papel do próprio Reino Unido, então com Tony Blair à frente do cargo de primeiro ministro.

O discurso de Azevedo e o de Pinter se encontram justamente ao pôr em xeque as instituições que buscavam lhes prestar uma homenagem sem, contudo, terem agido com responsabilidade político social para com as sociedades que serviam.

Em Os Grandes Vulcões, o Coletivo Comum levanta, através do discurso de Pinter, discussões ainda hoje importantes dentro do macro espaço da política internacional, cada vez mais cambaleada pelo governo Bolsonaro – como deixa clara a inclusão do mandatário e de seu ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, em segmento sobre os desastres políticos e a construção de um discurso conciliador para parte da população à margem dos acontecimentos.

Dentro da discussão geopolítica na qual o Coletivo Comum mergulha na obra virtual, emergem ainda temáticas como a construção dramatúrgica de uma obra e seu papel frente à realidade social. Azevedo encarna, em interpretação que foge às armadilhas da mimetização, o próprio Pinter para dar voz às suas ideias e palavras.

Estruturado na linguagem do teatro documental – potencializada pelas possibilidades digitais – , Os Grandes Vulcões busca em referências musicais e cinematográficas a construção de ambiente cênico que propõe não apenas a discussão política e social, mas também pondo em perspectiva o papel contestador e, mesmo, documental da arte.

É especialmente potente o segmento que apresenta uma colagem de uma série de filmes, entre eles O Homem do Sputnik (1959) e Os Cafajestes (1962), ao som de Comentários a Respeito de John, canção composta e lançada pelo cearense Belchior (1946-2017) em 1979.

Embora use da sobreposição de imagens e sons para sublinhar o caráter explicitamente documental de Os Grandes Vulcões, o coletivo foge a qualquer mergulho excessivo no ambiente digital, construindo obra que preza pelo contato direto e simples com o público, o que torna a dramaturgia de Fernando Kinas saboroso mosaico documental, sem o prejuízo de preciosismos.

Ainda que sua direção peque por perseguir signos e técnicas de um teatro contemporâneo que não criam mais que distrações desnecessárias, Kinas preserva o diálogo de Azevedo com a obra, em excelente diálogo com o cenário de Julio Dojcsar e o figurino de Madalena Machado.

Por fim, Os Grandes Vulcões é grande obra que não apenas dá passo adiante nas investigações do Coletivo Comum, como joga no universo online bom exemplo de obra capaz de estabelecer contato direto com o público sem perder a chance de dar passo adiante em investigação acerca do digital.

SERVIÇO:

Data: 23 a 28 de abril (sexta-feira a quarta-feira)

Local: Canal oficial do Coletivo Comum no YouTube

Transmitido simultaneamente no perfil do grupo no Facebook

Horário: 20h

Preço do ingresso: Grátis

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