Coletivo A Digna intensifica conexões com a dramaturgia da grande metrópole ao encenar épico contemporâneo

Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca | Foto: Victor Nóvoa

Desde que se formou, há mais de uma década, o coletivo paulistano A Digna, formado pelos ator e dramaturgo Victor Nóvoa e pelas atrizes e produtoras Ana Vitória Bella e Helena Cardoso, investiga a relação da produção artística com os espaços públicos, expandindo discussões acerca de temas como o pertencimento e a coletividade em grandes metrópoles.

Desde então, o grupo vem propondo discussões acerca da apropriação dos espaços públicos pela iniciativa privada, o processo intenso de atravessamento das grandes metrópoles na vida de seus moradores, a formação de dicotomias sociais nas cidades e, claro, a velocidade com que a especulação imobiliária tem promovido um apagamento histórico e social em bairros tradicionais.

Em sua nova investida cênica, Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca, o coletivo promove a intersecção entre todas estas discussões ao levantar questionamentos sobre outro tema metropolitano: a gentrificação.

Encenado em formato épico, o drama narra, a priori, a história de um grupo de moradores de um condomínio de alto padrão localizado no centro da Barra Funda, bairro tradicional de São Paulo que, ao longo do tempo, vem enfrentando processo de apagamento de sua identidade em prol da construção de grandes conglomerados e de condomínios residenciais de alto custo.

Escrita por Victor Nóvoa, a dramaturgia tem estrutura clássica ao enfocar dois dramas familiares distintos: o de uma filha traumatizada que lida com sua mãe sufocante e o de um casal perfeito que enfrenta a desfuncionalidade da união matrimonial. Nóvoa constrói os diálogos e as ações dramáticas embasado na clássica dramaturgia realista do século XX, fazendo com que suas personagens bebam de fontes que conectam desde a dramaturgia ansiante e desesperada de Tennessee Williams (1911-1983), até as tragédias urbanas do cotidiano de Nelson Rodrigues (1912-1980).

Em cena, Ana Vitória Bella e Eliana Bolanho protagonizam embate familiar em registro absurdo. A dupla constrói bonito jogo de cena, enquanto sublinha o desespero histriônico da mulher que, traumatizada, só consegue desenvolver um diálogo com uma câmera enquanto alimenta um canal online sobre bebês Reborn, e uma matriarca saudosa dos anos de chumbo que passa os dias tratando como filhos um grupo de cães.

Em outro apartamento, Helena Cardoso e Paulo Arcuri operam na mesma chave ao viverem casal formado por um coach motivacional e uma evangélica atuante no mercado financeiro, que lidam com questões como sexualidade e relações de consumo em um matrimônio falido.

Embora se proponha um espetáculo baseado em pilares dramáticos, contudo, Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca é obra mais complexa do que necessariamente um drama familiar/ matrimonial sobre a vida de uma burguesia desfuncional. Sob a direção de Eliana Monteiro, o espetáculo ganha ares épicos ao abrir uma discussão macro frente ao drama clássico.

A encenadora propõe uma experiência mais abrangente ao posicionar o espectador como agente ativo da dramaturgia da obra. Com o apoio de 12 motoristas de aplicativo e do coletivo de ciclistas Señoritas Courier, o espetáculo desenvolve ação que tem início na casa do espectador, que é invadido por uma série de materiais sobre os benefícios do novo lançamento imobiliário localizado em área nobre da Barra Funda.

Ao contar com um motorista, que busca o espectador em casa, a imersão ganha outros ares quando a obra usa todo o trajeto da cidade como um palco com sua própria dramaturgia afeito a acontecimentos não programados (como, por exemplo, um acidente entre ciclista de fora do elenco, atropelado na sessão acompanhada pelo portal).

A obra abre caminhos para o que a cidade tem a oferecer antes de retomar o controle em encenação orquestrada com tom épico, a fim de contestar não apenas o processo de gentrificação, mas também como ele se relaciona à constante precarização do trabalho de motoristas de aplicativo, motociclistas e ciclistas entregadores de aplicativo.

Com a participação de Ícaro Rodrigues encabeçando um elenco de não atores, Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca abandona o teor meramente dramatúrgico para propor a fusão do teatro com a grande metrópole e tudo o que a cerca, neste que é um dos espetáculos mais contundentes da companhia.

Mérito de Eliana Monteiro, que conduz matematicamente seu (expressivo) elenco de amadores profissionais, que inserem discursos fluentes em obra que, nas mãos erradas, poderia soar como mero grito panfletário, mas, ao contrário, bebe da fonte do alemão Bertolt Brecht (1898-1956) não apenas em seu caráter épico urbano, mas também – e principalmente – quando se propõe a divertir o público para erguer (bem-vindas) discussões.

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