Comédia brejeira, A Família Addams triunfa ao mergulhar em ode satírica à própria trajetória

A Família Addams - O Musical | Foto: Caio Gallucci

Quando ganhou sua primeira montagem em palcos brasileiros, em 2012, A Família Addams – O Musical foi uma bem sucedida aposta no mercado nacional em um espetáculo que se sagrou um dos maiores fracassos de crítica da Broadway em 2009, mas seduziu a curiosidade de um público que, durante sua primeira temporada – estrelada pelos vencedores do Prêmio Tony Bebe Neuwirth e Nathan Lane – lotou o teatro e garantiu uma bem sucedida turnê e uma extensão de sua trajetória na Broadway – dessa vez estrelada por Brooke Shields e Roger Rees (1944-2015).

Ao estrear no Brasil, o musical já não era o mesmo. Os autores Marshall Brickman e Rick Elice (texto) e Andrew Lippa (músicas e letras) promoveram mudanças substanciais na obra, que seguiu em turnê por outras capitais norte americanas, até ganhar sua primeira montagem internacional em São Paulo, marcando forte posicionamento do Brasil frente ao mercado dos musicais latino americanos (a versão brasileira estabeleceu linguagem seguida por países como Argentina, Colômbia e Paraguai).

Pois, se depender da nova montagem, em cartaz desde quinta-feira, 10, no palco do mesmo Teatro Renault onde cumpriu uma das mais bem sucedidas temporadas de um musical na década passada, o Brasil seguirá na vanguarda ao estabelecer nova linguagem artística para um espetáculo que se tornou clássico contemporâneo no mercado nacional, possibilitando uma ressurreição da obra mesmo nos Estados Unidos, onde segue praticamente esquecido.

A obra narra um dia incomum na vida da excêntrica família criada em 1938 pelo cartunista norte americano Charles Addams (1912-1988), quando a primogênita Wandinha se apaixona por Lucas, um rapaz considerado “comum”, e decide marcar um encontro entre sua família e os pais do jovem apaixonado. 

O texto de Ellice e Brickman resulta, essencialmente, irregular, uma vez que busca não apenas recriar características básicas das personagens icônicas, além de inserir questões supérfluas para tentar estabelecer situações de tensão, mas estabelecer enredo meramente trivial. 

Não seria difícil, por exemplo, estabelecer relação direta entre A Família Addams – O Musical e as obras mais prosaicas do dramaturgo francês Florian Zeller, A Mentira e A Verdade, montadas em festivais norte americanos entre 2008 e 2010, em que justamente as relações baseadas em mentiras e a supervalorização da verdade entram em discussão. Guardadas as devidas proporções é nesta estrutura básica que o musical é alicerçado.

E esse talvez seja um dos motivos pelos quais a obra tenha tido pouca adesão do público norte americano ao longo dos anos que seguiram a montagem original. Em suma, a história que molda A Família Addams – O Musical é basicamente protocolar, sem estabelecer qualquer relação com a trajetória das personagens criados exatamente como uma crítica feroz ao convencional.

Contudo, é exatamente neste ponto que a montagem brasileira cresceu há 10 anos, e volta a triunfar nesta nova e excelente montagem dirigida pelo italiano Federico Bellone. O encenador se prende pouco ao fiapo de dramaturgia estabelecido pelos norte-americanos para lançar foco às personas que compõem o elenco e produzir narrativa alternativa, estabelecendo contato direto com o público brasileiro.

Bellone não se priva a dar total liberdade para que seu elenco não apenas crie em cima das personagens, mas trace diálogo direto com o público a fim de sublinhar, cena a cena, que este se trata de um musical satírico, feito justamente para não ser levado a sério enquanto obra dramatúrgica, mas enquanto um acontecimento que presta um tributo às suas histórias e – principalmente – à trajetória do palco onde estão inseridos.

É salutar que, ao marcar a volta da produtora Time 4 Fun à linha de frente dos grandes musicais após quatro anos, a encenação preste um tributo às produções que chegaram ao palco desde que ele ainda mantinha o clássico nome de Teatro Abril (sucessor do histórico Teatro Paramount).

Portanto, a (sagaz) orquestração dividida entre Thiago Rodrigues (direção musical) e Miguel Briamonte (supervisão musical) reverencia pelo menos 15 musicais com inserções nos arranjos originais da obra de Lippa (que se refletem na própria encenação). É hilário que, por exemplo, Marisa Orth entre em cena ao som da clássica orquestração de Sunset Boulevard, o suntuoso musical de Andrew Lloyd Webber que a atriz protagonizou no Brasil em 2019 em montagem que não estava à altura de sua intérprete.

Também resulta hilária a autoreferência de Kiara Sasso a um de seus papéis mais icônicos, a revolucionária Maria Von Trapp, de A Noviça Rebelde, que protagonizou em 2008, quando já estava sagrada como o principal nome feminino de protagonismo dos musicais brasileiros.

Na listagem constam ainda obras como Chicago, A Bela e a Fera e Les Miserables, entre outros títulos. E a beleza destas citações é o fato de nenhuma delas soar demasiadamente deslocada em cena (é hilária, por exemplo, a cena em que Liane Maya estabelece a personalidade de sua Vovó Addams ao som de Age of Aquarius, de Hair).

Este é apenas um dos acertos da encenação de Bellone, que faz sua A Família Addams beber de fontes como os cartoons seminais de Charles Addams e, principalmente, da curta franquia de filmes de Barry Sonnenfeld estrelados por Raúl Júlia (1940-1994) e Anjelica Huston em 1991 e 1993.

Ao longo de pouco menos de três horas, a montagem resulta enxuta e com ritmo invejável, valorizando as cenas de cada personagem, ainda que, na encenação de 2022, a história original de Wandinha perca força e resulte essencialmente em história coadjuvante e suplementar, abrindo espaço para a sátira ao teatro musical e à absorção brasileira ao american way of life com sutis inserções políticas.

Entretanto, ainda que abra mão de algumas propostas narrativas, o espetáculo jamais soa nonsense. Ao contrário, o mergulho na comédia brejeira funciona e estabelece outras ligações, como a clássica sitcom de 1964 criada e desenvolvida por David Levy (1913-2000) e Donald Saltzman e a série animada de 1992, resultando em obra que, embora não busque o riso fácil, consegue despertar a identificação imediata do público.

Beneficiada pela memória afetiva do público, a produção jamais se deixa levar pelo jogo fácil, estabelecendo, inclusive, novas nuances para suas personagens. A Mortícia de Marisa Orth deixa de lado sua leitura sóbria da montagem original para resultar em uma espécie de showoman que mergulha no teatro de revista e no universo do cabaré de números como Segredos e A Morte ali na Esquina, nos quais a artista emerge em referências ao universo de Bob Fosse (1927-1987) com Chicago e New York, New York.

Já Daniel Boaventura faz de seu Gomez Addams figura histriônica que bebe diretamente da fonte da criação de Nathan Lane, mas jamais tropeça na imitação pura. Grande ator, Boaventura é capaz de fazer graça e provocar gargalhadas da plateia com a mesma maestria que faz de seu número Feliz/ Triste um dos momentos mais tocantes da produção.

Orth e Boaventura, embora sejam os bandleaders da montagem, encontram em seu elenco coadjuvante nomes à altura. Em momento iluminado da carreira, Kiara Sasso faz de sua Alice Beineke excelente anti-protagonista, na qual não apenas presta tributo à sua própria história, como também volta a se comprovar uma das melhores comediantes do teatro musical (prova já dada também há uma década, quando compôs o elenco de A Madrinha Embriagada em performance que lhe rendeu um Prêmio Bibi Ferreira).

A atriz tem seu grande momento ao solar Esperando, música incidental dentro da hilária cena do jantar que, nesta montagem, perde parte de seu brilho original, mas possibilita uma desconstrução da imagem de mocinha que Sasso assumiu ao longo da trajetória.

Parecido acontece com Fred Silveira que, no papel de Mal Beineke, ainda tateia sua personagem buscando ficar à vontade com a comédia brejeira num cenário que, verdade seja dita, não é estranho para o ator – que compôs o elenco de obras como Avenida Q e Meu Amigo Charlie Brown. Com o tempo, é provável que se afine a sua companheira de cena.

No papel de Lucas Beineke, o amor “normal” de Wandinha, Dante Paccola tem momento de brilho ao duetar com Pamela Rossini em Mais Louco que Você, mas não cativa no papel do rapaz determinado a se casar com a jovem primogênita Addams. Rossini, por sua vez, também resulta pouco à vontade no papel que, verdade seja dita, perdeu seu protagonismo nesta montagem focada nos dois casais protagonistas (Orth-Broaventura, Sasso-Silveira).

Boa atriz, Rossini não tem em Bom Caminho, o grande número de sua personagem, seu momento de brilho como era esperado, mas, tal qual Paccola, emerge no enérgico dueto com a adesão de Sasso e Silveira.

Entretanto, da gama de coadjuvantes, é inegável o destaque de Bernardo Berro como o hilário Tio Fester. O ator – que já havia comprovado excelente veia cômica ao compor o elenco de O Musical Mamonas – consegue estabelecer pontes entre a brejeirice de sua personagem e registro afetuoso. O ator faz crescer A Lua e Eu, número em que a personagem dedica sua paixão à lua.

Por sua vez, o trio formado por Liane Maya (Vovó), Tiago Kaltenbacher (Tropeço) e Raphael de Oliveira (que alterna com Rodrigo Ribeiro o papel de Feioso) angaria grandes momentos ao focar na comédia física e em diálogos indiretos e construções longe dos esteriótipos. Maya e Kaltenbacher, principalmente, valorizam os poucos momentos de protagonismo dentro da obra.

A lufada de ar fresco que A Família Addams – O Musical levou nesta nova temporada faz com que a montagem resulte muito superior a suas produções anteriores, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, seja pelo excelente cenário (Bellone), as coreografias (Marta Melchiorre) e os figurinos (Fábio Namatame), seja pelo excelente ensemble e swings formado por atores veteranos do calibre de Jana Amorim, Keila Bueno, Felipe Carvalhido, Matheus Paiva, entre outros, que valorizam o ritmo da montagem.

Disparadamente o melhor musical deste início da temporada, A Família Addams triunfa não apenas por não se levar a sério enquanto comédia, mas também – e principalmente – por saber tirar o que há de melhor em cada componente de seu elenco, capaz de crescer ainda mais à medida que a obra segue em cartaz.

SERVIÇO:

Data: 10 de março a 31 de julho (quinta-feira a domingo)

Local: Teatro Renault – São Paulo (SP)

Endereço: Av. Brigadeiro Luís Antônio, 411 – Bela Vista

Horário: 21h (quintas e sextas); 16h e 21h (sábados); 15h e 20h (domingos)

Preço do ingresso: R$ 37,50 (meia) a R$ 350,00 (inteira)

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