Crítica, Norma reverencia comédia de erros e estabelece diálogo quente com o público

A Vida é sua, a Norma é Nossa - Foto: Divulgação

Gênero que atingiu o ápice da popularidade teatral em meados dos anos 90, a comédia de erros – na qual as personagens se embrenham em situações limite calcadas em um teia de mal entendidos – se tornou tão presente quanto desafiador no teatro patropi, com uma série de obras capitaneadas por nomes como Juca de Oliveira, Marcos Caruso e Jandira Martini.

Títulos de sucesso de público e (algum) prestígio da crítica inundaram os palcos, entre eles Meno Male (1987), Caixa Dois (1997) e Às Favas com os Escrúpulos (2007), de Oliveira, Trair e Coçar é só Começar (1986), de Caruso, e Sua Excelência, o Candidato (1995) e Porca Miséria (1993), de Caruso e Martini.

Estes, entre outros títulos, compuseram uma seleção de obras que ajudaram as comédias de erros e o vaudeville a cair no gosto da classe teatral, principalmente em São Paulo, ganhando espaço fora do circuito convencional, em espaços que foram perdendo prestígio entre o final da década de 2000 e início dos anos 2010.

Foi apenas em meados da década passada que as comédias de erros voltaram a ser produzidas em grandes circuitos com obras como A Escola do Escândalo (2011), de Richard Brinsley Sheridan (1751-1816), O Que o Mordomo Viu (2014), de Joe Orton (1933-1967) e a dobradinha A Verdade (2019) e A Mentira (2019), do francês Florian Zeller, títulos de grande quilate que fogem à incessante busca pelo riso fácil (embora as montagens nem sempre estejam à altura do texto).

É por esse caminho que percorre A Vida é Sua, a Norma é Nossa, solo escrito por Anderson Dy Souza que marcou a primeira investida inédita de Eduardo Martini na nova realidade do teatro online. Sem se envolver diretamente com a linguagem digital que tem pautado espetáculos mais ambiciosos dentro da conjuntura contemporânea, Martini faz deste solo mais um bem vindo caso de obra que valoriza mais a dinâmica da relação texto-ator do que das experimentações modernas.

Sem surfar na onda vanguardista, a comédia triunfa por jogar Martini no campo do que há de melhor na comédia de erros, seara pela qual passeara em menor escala com encenações como I Love Neide 2 – A Viagem (2013), de Pedro Fabrini e Uma Lágrima para Alfredo (2019), de Raphael Gama.

Em A Vida é Sua, a Norma é Nossa, o ator dá mergulho rasante no gênero ao propor um jogo de telefone-sem-fio com a plateia por meio de personagem que se envolve com a vida de amigos e vizinhos através de uma fofoca mal contada. Enquanto bebe, Norma desanda a produzir teia de intrigas sem se dar conta dos prejuízos.

Embora ressoe à primeira vista como obra alienada, Norma estabelece boa ponte com o contemporâneo ao servir de imagem crítica da disseminação das famosas (e cada vez mais presentes) fake news em tempo analógico. Compreendendo com perfeição o conceito das notícias falsas ligadas ao universo eleitoral, a personagem funciona como representação graciosa de público alienado e despreocupado com os rumos do cenário sócio político brasileiro, ainda que jamais faça alusão direta à política.

A despeito das irregularidades da dramaturgia de Dy Souza, Martini triunfa na pele da viúva desocupada que cria uma teia de intrigas sobre a vida de uma antiga vizinha. Embrenhado no streaming teatral desde meados de agosto, quando estreou online seu solo I Love Neide – Manual de uma Cinquentona Atrevida e passou por obras como a citada Uma Lágrima para Alfredo e Papo com o Diabo, o ator faz de Norma sua melhor investida nesta seara.

Com cenário realista, o ator esbanja carisma e constrói uma ligação forte com o público num processo que tem se tornado cada vez mais raro nos experimentos cênicos online em performance que vai crescendo junto ao texto, que, a medida que se desenvolve, resulta menos ambicioso do que sua premissa faz transparecer, mas ainda se impõe como boa comédia matematicamente construída.

Longe de qualquer experimentação auto reverente, A Vida é Sua, a Norma é Nossa é entretenimento crítico que foca no essencial do fazer teatral: a relação obra-plateia sem jamais nivelar a inteligência do público por baixo.

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