Davi Novaes ancora navio dramatúrgico em solo seguro ao mergulhar em inventário particular

Davi Novaes em cena em É Mais Difícil Ancorar um Navio no Espaço | Foto: Murilo Alvesso

Em 2010, ao encenar sua obra seminal, Música para Cortar os Pulsos, o ator, dramaturgo, roteirista e encenador paulistano Rafael Gomes angariou legião de fãs devotos a sua linguagem jovem e de caráter subjetivo tendo como foco essencial questões intrínsecas e atemporais da juventude, como as questões que cercam os sentimentos amorosos, a falta de rumo de uma vida a ser decidida antes dos 30 e as formas cada vez mais diversas de se relacionar com as pessoas em seu entorno.

A partir desta obra, uma série de artistas passaram a traçar caminhos em busca de emular linguagem que remetesse àquela primeira investida dramatúrgica de Gomes, com resultados nem sempre à altura de sua inspiração. É justo dizer que dois nomes conseguiram se sobressair no mercado ao alicerçar suas criações sob influência da obra alçada a clássico contemporâneo. A paulistana Thereza Andrada, com seu texto de estreia, o subliminar Todas as Pétalas que Chorei por Você, que estreou em 2020 no universo online, e o paulista Davi Novaes, que pôs a obra de Gomes entre as tantas referências trituradas em sua própria criação.

Desde seu primeiro passo dramatúrgico, em 2018, com a encenação de O Que Restou de Você em Mim, Novaes já pulsava o diálogo com público essencialmente jovem ao narrar a investigação de uma cura para uma separação ruidosa. Com influências cinematográficas e literárias, o artista mergulhou na dor pungente de uma paixão fracassada enquanto tateava voz dramatúrgica própria.

E é essa voz que resulta mais latente em É Mais Difícil Ancorar um Navio no Espaço, segundo título da obra autoral que ganha montagem no palco do Teatro do Núcleo Experimental, em São Paulo, em cartaz desde a última sexta-feira, 12.

Na obra, o autor volta a lançar olhar para o lado de dentro, mas expande leque de influências fincado em terreno mais literário do que dramatúrgico propriamente dito. O artista estabelece inventário precoce de sua criação autoral em diálogo direto com o público, que, justiça seja feita, se abriu com facilidade para a troca baseada novas devaneios e elucubrações de Novaes.

Ainda que divida a cena com Marcela Piccin, o autor jamais faz de É Mais Difícil Ancorar um Navio no Espaço um duo propriamente dito. São dois solos que correm em paralelo, e soariam meramente protocolares, não fosse a boa sacada – de novo, literária – do artista, de ambientar as duas histórias como a relação intrínseca entre criatura e criador.

Em cena, Novaes dá vida a seu próprio alter ego dramatúrgico, retratando as dificuldades da continuidade de sua própria obra teatral, enquanto Piccin vive uma professora em meio a uma crise existencial engatilhada – de novo – pelo fim ruidoso de um relacionamento.

Irônico, sagaz e com bem vindas doses de um humor sardônico, Novaes capta a atenção do público, ainda que enverede por caminhos quase preciosistas de um texto que, eventualmente, opta por divagações que pouco adicionam ao todo do espetáculo.

Vestido como um operário de sua própria arte (em figurino orquestrado com inteligência pelos atores), Novaes navega com delicadeza por seu próprio universo, e são seus solos que realmente geram conexão com a obra, uma vez que, quase perdidos, os solilóquios de Piccin pouco fazem pelo avanço do espetáculo.

Entretanto, mesmo que pouco façam pela montagem como um todo, as cenas de Piccin são valorizadas pelo ótimo trabalho da atriz. Grande intérprete, a artista abusa de excelente timing cômico e injeta verdade nos diálogos de sua personagem, que também beiram tom literário e de acento preciosista.

É Sempre Mais Difícil Ancorar um Navio no Espaço é obra que se sustenta, também, pelo excelente jogo entre a dupla de grandes atores, que cativam mesmo sem, necessariamente, desenvolver uma história com a qual possam caminhar. Parecido acontece com a – também excelente – direção de Zé Henrique de Paula.

O encenador constrói aura quase mítica em conexão com a luz de Fran Barros e o cenário construído por Paula, valorizando a ligação do público com o tom literário da dramaturgia, aproximando a plateia da experiência proposta por Novaes.

É certo que, ao expandir suas influências e se deixar levar também pela formação em Letras, Davi Novaes se comprova um (grande) criador literário, ainda que É Sempre Mais Difícil Ancorar um Navio no Espaço não roce a delicadeza de seu texto de estreia.

Contudo, o artista dá passo adiante na construção de obra que dialoga com seu infinito particular, abrindo caminho para sua própria legião de seguidores, que, tal qual o autor em outros tempos, também encontrarão na criação de Novaes base para expandir em dramaturgia suas próprias questões íntimas.

SERVIÇO:

Data: 12 de novembro a 12 de dezembro (sexta-feira a domingo)

Local: Teatro do Núcleo Experimental – São Paulo (SP)

Endereço: Rua Barra Funda, 637 – Barra Funda

Horário: 21h (sextas e sábados); 19h (domingos)

Preço do ingresso: R$ 10,00 (meia) a R$ 20,00 (inteira)

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