Marisa Orth se desnuda em salto sem rede na tragicomédia Bárbara para reforçar comunhão com o público

Marisa Orth em foto de divulgação de Bárbara | Foto: Bob Wolfenson

Ao entrar em cena no palco do Teatro Faap, em São Paulo, e estabelecer diálogo direto e sincero (sinônimo) com a plateia, que desagua em aliciante interpretação de The Best (Luni/ Roberto Firmino), um dos grandes hits da banda Luni, Marisa Orth até ameaçou a impressão de que Bárbara, o primeiro solo de sua carreira, adaptado do (excelente) livro A Saideira: Uma Dose de Esperança Depois de Anos Lutando Contra a Dependência, de Barbara Gancia, beberia diretamente da influência musical dos shows da artista. Pista falsa.

Embora Orth realmente dê a impressão de pisar em solo seguro ao se impor como one woman show, Bárbara é uma das obras mais arriscadas da trajetória desta atriz paulistana que se fez (boa) cantora ao longo das décadas. A atriz mergulha no registro tragicômico de espetáculo que não tem medo de surfar nas gargalhadas da plateia, assim como não se furta de envolver a plateia em situações dramáticas que beiram o trágico.

E nenhum registro soa meramente protocolar, uma vez que a figura em questão é justamente Barbara Gancia, jornalista, escritora e colunista que construiu imagem pública alicerçada no autodeboche e em fina ironia, que permeia não só o livro que deu origem à peça, mas também a excelente dramaturgia assinada por Michelle Ferreira.

Ferreira constrói narrativa etílica e aliciante sem compromisso com cronologias ou mesmo com o jogo do teatro realista. As histórias de Gancia e Orth se alinham em cena com maior ou menor teor cômico, mas sem jamais buscar o riso fácil. Ao contrário. Embora tenha passagens naturalmente engraçadas, Bárbara é obra dramática de maior acento trágico do que necessariamente cômico.

Ainda que Orth empreste certa graça com base em seu registro cênico, ou mesmo em excelente timing burilado ao longo de expressivos 40 anos de trajetória, a obra de Ferreira (e mesmo a de Gancia) se estrutura em história de tom comovente, sem jamais buscar o discurso básico ou piegas.

Mérito também da excelente direção de Bruno Guida, que, em Bárbara, orquestra um de seus melhores trabalhos em cena. Guida não se priva de usar a imagem de Orth, de identificação rápida e direta com o público, para aliciar sua narrativa cênica. O encenador foge ao registro essencialmente realista para fazer do solo uma narrativa universal.

Sem pontos baixos, Bárbara é obra em que tudo funciona. Desde a cenografia de Ana Turra até o ótimo desenho de luz de Guilherme Bonfanti, passando pelo figurino de Fause Haten e a música original assinada por André Abujamra, que, ao compor a trilha do espetáculo, ergue mais uma ponte para celebrar as quatro décadas de trajetória de Marisa Orth, figura com quem construiu parceria profícua ao longo das décadas de 1980 e 1990.

Contudo, é Marisa Orth quem realmente eleva o espetáculo a programa fundamental na retomada do teatro paulistano. Orth mergulha sem subterfúgios tanto na dramaturgia de Ferreira quanto nas propostas cênicas de Guida, que presta tributo à própria atriz. 

Ao interpretar The Best, Orth não apenas referencia o nome e a personagem Bárbara (presente na canção gravada pela banda Luni em seu primeiro e único álbum de estúdio, de 1988), mas também presta tributo à própria história como artista. A canção referencia seus tempos de band leader com arranjo que a aproxima do registro feito em disco solo, gravado pela artista em 2009 (Romance Vol. II), além de trabalhar com a auto ironia tão característica nas obras da atriz.

Este não é o primeiro salto dramático ao qual a artista se propõe nas últimas décadas. Em 2005, se uniu a Luís Gustavo (1934-2021) para montagem irregular de Misery, baseado no clássico filme homônimo de 1992, que sofreu ainda com a ressaca do fim do humorístico Sai de Baixo (1996-2002). Já em 2010, deu vida à Simone de Beauvoir (1908-1986) num de seus melhores momentos em cena em O Inferno Sou Eu, texto de Juliana Rosenthal K. que não alçou voos maiores por problemas de direção.

Foi também a direção que impediu que Sunset Boulevard, em 2019, desse a Orth o reconhecimento que merece dentro do teatro musical. Sua Norma Desmond, embora envolvente, não conseguiu superar o registro melodramático que permeou a pouco inspirada direção do norte americano Fred Hanson.

Bárbara é, enfim, não apenas uma das melhores produções da temporada, mas o grande espetáculo que a artista merecia, onde tudo funciona com precisão, e no qual Orth tem a chance de, mais uma vez, se comprovar a principal artista de sua geração, seja no campo da comédia seja no campo dramático.

SERVIÇO:

Data: 22 de outubro a 12 de dezembro

Local: Teatro FAAP – São Paulo (SP)

Endereço: Rua Alagoas, 903 – Higienópolis

Horário: 21h (sextas e sábados); 18h (domingos)

Preço do ingresso: R$ 25,00 (meia) a R$ 180,00 (inteira)

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