Embalada como épico político, Sueño cresce ao dissecar boa tragédia familiar

Sueño | Foto: João Caldas

Velho clichê batido na análise do universo teatral paulistano, a impressão de que um espetáculo nasce clássico talvez seja um dos maiores equívocos do olhar acerca de uma obra que, a bem da verdade, o tempo (e, guardadas as devidas proporções, público e imprensa) há de validar. 

Contudo, em se tratando de Sueño, espetáculo que cumpriu concorrida temporada na área externa do Teatro João Caetano, em São Paulo, a expressão possa ser aplicada sem embaraços.

Escrita e encenada por Newton Moreno sob a produção da Heróica Companhia Cênica, Sueño é, sim, espetáculo que já nasce com ares de um clássico contemporâneo. E muito disso se deve, claro, pelo trabalho do dramaturgo – um dos mais importantes de sua geração e deste começo de século.

Moreno orquestra em Sueño narrativa pouco óbvia, flertando, na dramaturgia, com o teatro contemporâneo e a típica farsa ambientando seu prólogo como um diálogo direto entre um diretor latino americano e o bardo inglês William Shakespeare, que se encontra em uma espécie de embate com sua mecenas histórica, Rainha Elizabeth, que exige uma peça nova para embalar o casamento do parlamentar Sir. Thomas Berkeley e da cortesã Elizabeth Carey, em 1596.

Shakespeare, então, teria dado à luz Sonhos de uma Noite de Verão, um de seus títulos mais incensados pelo caráter aparentemente onírico e bucólico que, por trás, escondia críticas ferozes ao sistema político da monarca Elizabeth e de todo o parlamento britânico à época, além de tecer visão irônica aos costumes sociais dos frequentadores dos aposentos reais.

A mesma leitura pode ser feita a Sueño, obra construída como leitura crítica ao sistema ditatorial latino americano apoiado e patrocinado pelas grandes elites, mas que esconde, na verdade, a história de uma clássica tragédia familiar digna de autores como Bernard Shaw (1856-1950) e, claro, Nelson Rodrigues (1912-1980).

A peça narra a trajetória do diretor de teatro Vini (José Roberto Jardim), que arquiteta a montagem do clássico shakespeariano em meio a tomada de poder do ditador Augusto Pinochet (1915-2006), em 1973. 

Levado pela atriz revolucionária Laura (Michelle Boesche) para a luta armada, o diretor busca fugir com a amada, mas encontram problemas dentro da própria família da artista, entre eles sua mãe (Denise Weinberg), viúva de um ex-militar e uma das principais apoiadoras do golpe de Pinochet, ainda que não se alinhe à ascensão de classes mais baixas ao poder.

Fugidos, o casal acaba separado quando a jovem Laura é capturada e mantida grávida como refém de um componente do governo (Leopoldo Pacheco) que lhe devota uma fixação doentia. O diretor consegue o exílio e mantém vivo o desejo de montar Sonhos de uma Noite de Verão, e assim o faz em ensaios eternos sem jamais estrear.

Assinada pelo próprio Newton Moreno, a encenação constrói e estabelece cada narrativa a seu próprio tempo, sem jamais apressar o passo em busca de uma resolução rápida ou rasa. 

Ao longo de duas horas e meia, a montagem abre espaço para estabelecer a trajetória de cada personagem ao longo de uma passagem de tempo de duas décadas desde o golpe militar até o retorno do jovem encenador a seu país de origem, a busca de uma mãe, ex-apoiadora do regime ditatorial, por sua filha desaparecida e a descoberta da existência de uma neta, e, claro, a montagem do clássico shakespeariano.

Tudo converge no espetáculo – que cumpriu sessões extras neste último fim de semana -, desde o excelente trabalho do elenco (com destaque para a matriarca decadente de Denise Weinberg e a versatilidade tragicômica de Paulo Pontes), até a direção musical de Gregory Slivar, que não só assina a trilha, como a executa ao vivo a cada sessão.

Se o cenário de Chris Aizner e a luz de Wagner Pinto dialogam com o teor onírico estabelecido no clássico shakespeariano, a direção que Moreno estabelece a seus atores os conecta justamente com a linguagem dramática da típica tragédia familiar na qual Sueño deságua em seu segundo ato – um embate geracional que traça críticas ao exponencial crescimento empresarial favorecido pelo período ditatorial e sua abertura comercial.

À primeira vista, talvez Sueño passe a impressão de espetáculo restritivo ao estabelecer conexão tão intensa com Sonhos de uma Noite de Verão, o que pode fazer com que o público que desconheça a obra não capte todas as referências espalhadas na dramaturgia de Moreno. A pista, contudo, é falsa. A montagem independe de qualquer conhecimento prévio – ainda que, tendo lido ou visto alguma montagem, seja mais fácil apreciar o excelente Puck interpretado por Simone Evaristo.

Também é difícil estabelecer, à primeira leitura, contato direto com o fato de a dramaturgia ter optado por uma pesquisa acerca da ditadura chilena, uma vez que a história poderia ser ambientada ao longo do período ditatorial brasileiro sem prejudicialidade. Entretanto é detalhe menor frente às relações estabelecidas com a ditadura latino americana em si muito similar em qualquer um dos países.

Enfim, ainda que seja um abuso de clichê, afirmar que Sueño é obra que nasce clássica e, também por isso, um dos principais espetáculos da temporada, não é, de forma alguma, exagero ou mero exercício prosaico de retórica, uma vez que, com o trabalho de um grande elenco, um bom texto e uma encenação inteligente que sabe estabelecer diálogos ricos entre as possibilidades que oferece ao público, a obra emana força e faz jus às filas que a tornaram a montagem mais concorrida deste fim de temporada.

SERVIÇO:

Este espetáculo está fora de cartaz

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