Hamlet À L´imperátif – Um Sistema-Hamlet para festejar o teatro

Hamlet À L´imperátif | Foto: Divulgação

Um Hamlet ao sol do meio dia, em cima de um palco simples, armado ao ar livre no icônico Jardim da Biblioteca Ceccano, em Avignon, local com experiência em empreitadas filosófico-teatrais de fôlego (como a apresentação da República, de Platão, de Alain Badiou, em 2015). Aqui, Oliver Py, autor e diretor, com seu Hamlet à L´Impératif, nos traz Hamlet em 10 episódios diários, além das apresentações de uma síntese, com cerca de duas horas e meia – a que optei por assistir. 

O público é colocado entre o palco e a passarela que liga o cenário- uma estante de livros gigante, Biblioteca-Hamlet?- ao músico. Sombreado por duas oliveiras. Cadeiras e um balde de lixo simples, mantos e uma arara de poucos figurinos. Estamos finamente no teatro, e a peça começa nos lançando de novo à plateia e sua presença – um verdadeiro evento no mundo pós pandemia – e a questão do olhar, da construção da representação e suas testemunhas, já revelam seu protagonismo na experiência. 

Mas não só: Hamlet aqui é o eixo através do qual assistimos girar a História europeia dos últimos séculos, dos sonhos da Renascença, à amargura do século XXI ou as grandes questões filosóficas que tremeram a terra nas últimas muitas décadas. A pergunta é a mola propulsora neste Hamlet montado e desmontado diante do público e Py nos lembra que ela é o início desta peça que se tornou paradigma mesmo do teatro. Um modelo socrático cuja resposta não importa tanto, afinal, não há respostas universais, só questões universais. 

E não só Shakespeare e seu enorme projeto ético e estético se abrem para nós como portal de uma experiência em muitas camadas da consciência e da linguagem, mas todo um universo gigantesco daquilo que já foi escrito sobre Hamlet – o texto é uma verdadeira enciclopédia em que filósofos, linguistas, sociólogos, psicanalistas, historiadores, juristas e até Jesus Cristo (“eu sou aquele que é!”) dialogam com as principais questões do bardo. E um dos grandes méritos da encenação é exatamente que ela nos conduz, com simplicidade e deleite teatral, a esses inúmeros diálogos que a cultura ocidental produziu sobre a peça nos últimos séculos – com sínteses irreverentes, paradoxais, divertidas – e que já não conseguem ser separadas dela, se tornam sua carne. 

Um verdadeiro sistema-Hamlet, com muitas portas e que nos leva de volta a nós mesmos. A filosofia vira material de jogo do mais puro teatro, este lugar de cruzamentos de realidades – que abarca desde a abstração do pensamento “elevado”, ao cru deboche do senso comum. Seu lugar, parece repetir a peça, não é só o palco ou a cena. Mas o território sutil da consciência da plateia alimentada pela avalanche de imagens. 

A palavra aqui talvez seja a grande personagem deste Hamlet. Ou a linguagem. Com prazer e assombro, a montagem lança nossa atenção ao fato que Shakespeare nos propõe todo um sistema de linguagem, que é o próprio teatro – a experiência conjunta que se faz no palco e na imaginação do espectador – um sistema poético que acessa o que às vezes a palavra não alcança, aberto a múltiplos atravessamentos. Não só o que fala Hamlet, mas uma maneira de falar sobre todas as coisas.

Mas a palavra é deleite, fugidia, objeto de apreciação, de cognição do mundo e o próprio mundo, em si.  A palavra que não representa, mas é. Como no teatro em que pensar é agir. 

E Hamlet imobilizado e suas inúmeras questões e solilóquios se mostra como plataforma ética e estética para o questionamento da ação no mundo. A pergunta principal aqui, conforme nos revela Horácio com todas as letras, no fim, é menos “ser ou não ser?”, mas “o que eu devo fazer?” E é diante da monstruosa e sublime liberdade humana que conhecemos a ética – parece nos soprar o fragmento final.

Uma cena poética e política, como a obra original. Em que, através da fábula, da ficção, como no artifício de Hamlet que propõe o teatro dentro do teatro para que um rei revele seus crimes, passamos pelas inúmeras representações do poder, e a própria ideia do poder inexistente fora da representação. A peça afirma, sem medo do imperativo: não há diferença entre ação política e representação teatral, nos sugerindo, na plateia, através da imagem do rei com seu manto e coroa de fantasia, a associação com nosso momento político contemporâneo e aos falsos mitos elevados pela mentira às posições de poder. “Todo poder não passa de representação”. 

A análise da peça é elemento de jogo, procedimento próximo de peças de estrutura lúdica russas contemporâneas, como Seis Personagens à Procura de um Autor, de Pirandello, na montagem de Vasiliev, que arrebatou Avignon em 1988. Mas aqui, na montagem de Py, a análise é explicitada como texto também. O exemplo novamente é o mais conhecido (e temido) “solilóquio” de Hamlet, um leitmotiv, como não poderia deixar de ser… (que começa com “Ser ou Não ser”).

Para chegar a ela, percorremos um caminho labiríntico, somos levados, de maneira absolutamente teatral, a olhar de longe para a pergunta, como uma grande angular, a começar nosso percurso pela questão central, a comparar diversas traduções. Os atores nos lembram a intensa teatralidade da situação proposta por Shakespeare, muitas vezes que foge da análise dos diretores : é um monólogo com quatro observadores, escondidos. 

Portanto, feito para uma plateia? Não só uma reflexão, mas ação e elemento fundamental para se “entender” a cena Hamlet-Ofélia seguinte e o que de fato se desenrola, seus questionamentos sobre a virtude, a verdade e a exortação à Ofélia “Vá para o Convento”. A madura Céline Chéenne joga com desenvoltura com o papel da jovem Ofélia como com o de Gertrudes, indo do lírico ao tragicômico, da mais absoluta conexão com a verdade cênica ao escracho, numa atriz que se transforma o tempo todo generosamente na frente do público com a mesma prontidão e rapidez com que coloca uma parte da frente de um vestido vermelho e se torna rainha ou coveira. 

Um verdadeiro tratado sobre a linguagem teatral, mas não teórico, estético, lúdico – o teatro dentro do teatro e todos os efeitos da metateatralidade torna o fato de estarmos no teatro o grande evento. Potencializado pela grande ausência do encontro cênico durante a pandemia. A plateia está faminta sim. Mas o banquete de imagens de Oliver Py e de universos éticos nos leva a desejar, saciados, aquilo que as palavras talvez não acessem mais. O resto…é sim: silêncio.

Viviane Dias é dramaturga, atriz, diretora. Uma das fundadoras da Estelar de Teatro. Doutoranda na ECA-USP, atualmente cursa um doutorado sanduíche na Sorbonne, na França.

SERVIÇO:

Hamlet à L´Impératif (Festival d’Avignon)

Data: 08 a 23 de julho

Local: Jardim Ceccano – Avignon (França)

Horário: 12h e 18h (sessões duplas)

Preço do ingresso: Grátis

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