Malú Bazán disseca épico cotidiano ao propor montagem seca baseada na pureza teatral

Mulheres Sonharam Cavalos | Foto: Cassandra Mello

Alguma coisa está fora de ordem em Mulheres Sonharam Cavalos, primeira montagem brasileira do texto do argentino Daniel Veronese sob direção e tradução de Malú Bazan. E, neste caso, este é um dos melhores elogios a ser feito ao espetáculo em cartaz no Espaço º Andar, na Barra Funda, desde o último sábado, 13.

Escrita em 1993 e encenada numa Argentina que olhava, com duas décadas de distância, para os efeitos ainda latentes do fim da ditadura Militar que durou de 1966 a 1973, a obra de Veronese ambienta sua ação no cotidiano de uma família formada por três irmãos que se encontram para um jantar acompanhados de suas respectivas esposas.

Emulando a clássica dramaturgia norte americana existencialista, na qual as questões psicológicas falam mais do que as ações de suas personagens, Mulheres Sonharam Cavalos toma contornos épicos ao trabalhar em cima dos mitos de Cronos e Kairós para estabelecer a linha temporal de uma obra que jamais preza pela linearidade.

E são justamente estas quebras temporais que potencializam não só a dramaturgia original, mas também, e sobretudo, a direção de Malú Bazan, que, tal qual a proposta de Veronese, evita qualquer elemento cênico que não seja essencialmente o texto e o (excelente) trabalho de seu grupo de atores.

A encenadora põe seu elenco à prova numa montagem que demanda – tal qual o título faz sugerir – uma força cavalar. Não há saídas de cena, nem tampouco artifícios cênicos que amorteçam a experiência da presença dos atores ao longo de quase uma hora e meia de espetáculo.

Formado por Anna Toledo, Bruno Perillo, Erica Montanheiro, Gustavo Trestini,  Haroldo Miklos e Rita Pisano, o elenco constrói jogo cênico intenso, sublinhado pelo trabalho de corpo orquestrado por Bazán numa coreografia tão intensa quanto e friccionada quanto o texto, que, através de características cotidianas, discute temas como a violência, o machismo, o sexismo, o abuso sexual, o abuso do álcool e a dependência emocional para desaguar numa analogia sobre os resultados do período ditatorial.

Ainda que nunca haja uma citação direta à crise política causada pelos governos de ditadura, Mulheres Sonharam Cavalos jamais deixa de estabelecer esta conexão, intensificada pela direção, que ergue pontes com o cenário sócio-político brasileiro, ainda que sem apelar jamais para obviedades.

Nada, aliás, é óbvio em Mulheres Sonharam Cavalos. Desde a ambientação cênica – como numa sala multiuso de ensaios do º Andar – até os figurinos (ambos assinador por Anne Cerutti), que remetem, também à trajes de ensaio e casualidades, tudo tem como principal foco a ação dos atores, da direção e do texto. Mesmo a trilha sonora – que remete a registros cinematográficos – dividida entre Bazan, Miklos e Perillo e o desenho de luz de Miló Martins, tudo opera no registro do minimalismo, a fim de potencializar o tripé dramático.

E é esse tripé, sustentado pelo excelente elenco, que faz da montagem uma das obras mais potentes da retomada cultural após a paralisação causada pela crise sanitária e política do Coronavírus. 

O único senão que ronda a obra – como um defeito da matriz – é que tanto Veronese quanto Bazán partem do pressuposto de que um dos principais atos da ditadura Argentina, o de separar crianças de suas famílias de origem, é amplamente conhecido. Sem uma pesquisa prévia, talvez os grandes momentos de Erica Montanheiro em cena percam parte de sua intensidade.

A atriz, inclusive, é um dos destaques em um elenco sem pontos baixos. Tresitini, Miklos e Perillo constroem jogo de cena alicerçado na parceria e no companheirismo entre irmãos, enquanto Rita Pisano consegue um de seus melhores momentos em cena na pele de uma artista pseudo-revolucionária sexual, embarcando no registro farsesco sem perder as nuances mais delicadas.

Contudo, uma das grandes surpresas de Mulheres Sonharam Cavalos é Anna Toledo, atriz que construiu carreira sólida e brilhante no teatro musical tupiniquim, que, neste drama, se comprova uma das grandes atrizes de sua geração. Toledo opera em momentos dramáticos de delicadeza na pele de uma mulher submissa e dependente emocional de seu marido, duas décadas mais jovem. É um lugar de fragilidade no qual a artista mergulha sem subterfúgios.

É justo afirmar que Mulheres Sonharam Cavalos é um ponto alto na carreira não apenas de seu elenco, mas também de sua diretora. Bazán, que já trabalhara com registros parecidos em obras de maior (Aproximando-se da Fera na Selva e Alice – Retrato de Mulher que Cozinha ao Fundo) ou menor (A Encomenda ou A Memória do Mar) intensidade, consegue neste épico cotidiano abrir diálogo com os mais variados tipos de público, sem jamais abandonar sua assinatura própria.

SERVIÇO

Data: 13 de novembro a 06 de dezembro (quinta a segunda-feira)

Local: Espaço º Andar – São Paulo (SP)

Endereço: Rua Dr. Gabriel dos Santos, 30 – 2º andar – Barra Funda

Horário: 20h15

Preço do ingresso: Grátis

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