Potente, Tectônicas resvala no clássico e foge do simplismo ao analisar violência do Brasil profundo

Tectônicas | Foto: João Caldas

É difícil não estabelecer uma relação direta entre Tectônicas, o espetáculo de Samir Yazbeck dirigido por Marcelo Lazzaratto em cartaz no Teatro do Sesi desde 10 de setembro, e boa parte da clássica dramaturgia produzida no século XX por autores como Tennessee Williams (1911-1983), Eugene O’Neil (1888-1953), Arthur Miller (1915-2005) e os brasileiros Nelson Rodrigues (1912-1980) e Dias Gomes (1922-1999).

A obra carrega em sua estrutura alguns dos principais dogmas desta dramaturgia que, por questões econômicas e mesmo artísticas, tem caído em constante desuso, principalmente no Brasil. Em Tectônicas, Lazzaratto conduz elenco de oito atores através da história, em suma, familiar orquestrada por Yazbek, que, nesta obra, ergue conexões com títulos anteriores de sua dramaturgia, entre eles A Terra Prometida e As Folhas do Cedro.

Ao ambientar a ação de Tectônicas em cenário interiorano, abrindo caminhos para a análise e discussão acerca da figura de coronéis e sua política de coronelato, dominante no estigma do poder rural, Yazbek promove bem vinda conexão entre a dramaturgia clássica, alicerçada no drama familiar, e a contemporaneidade política que, na última década, se ressente de linguagem de tom simplista ao tentar estabelecer crítica ao poder sem necessariamente haver o desenvolvimento de uma obra dramatúrgica menos óbvia.

Tectônicas percorre o caminho de estabelecer conexão imediata com o público, a fim de levá-lo a percorrer uma história de tom romanceado para que ele próprio encontre sua interpretação crítica. Em outras palavras, a obra foge a qualquer simplificação que subestime o público – e dribla, ainda, o risco da experimentação ininteligível.

O espetáculo percorre a vida de um pequeno grupo social em uma cidade no interior do Estado de São Paulo, estabelecendo seus papéis frente a um poder político e econômico de donos de terras, investidores e componentes de uma misteriosa irmandade que divide o poder de tomar decisões e assumir riscos em nome de terceiros.

A obra acompanha o retorno da jovem Fabíola à cidade. Filha de Jorge, um poderoso usineiro responsável por investir na política econômica da cidade, a jovem retorna de São Paulo após um período de estudos e se reencontra com Marcelo, jovem negro com quem teve um relacionamento interrompido após o jovem ter sido preso respondendo a uma acusação de agressão.

A liberdade do rapaz mexe com as estruturas de Jorge, que mantém uma obsessão em proteger sua filha e manter o jovem atrás das grades. Girando em torno do drama, a mãe de Fabíola, Marli, tenta manter o equilíbrio emocional ao estabelecer uma relação conflituosa tanto com a filha quanto com o marido, além de precisar lidar com as investidas de Emílio, o antigo amigo da família.

Por fim, há ainda a figura da amante de Jorge, Luna, e duas personagens (à princípio) misteriosas, Dolores e Alfredo, que investigam as placas tectônicas que dão base às mudanças terrestres do planeta.

A (fina) direção de Marcelo Lazzaratto guia com precisão as ações desta gama de personagens, estabelecendo pequenos signos que sublinham o jogo de poder que resulta em violência nesta pequena cidade, seja estabelecendo a permanência contínua de todos os personagens em cena ao longo da encenação, seja emulando o interior de uma fábrica de cana de açúcar no (excelente) cenário idealizado pelo próprio diretor.

Tudo converge com precisão em Tectônicas, desde o ótimo desenho de luz de Wagner Freire até a excelente trilha original de Dan Maia, passando ainda pelo figurino de Marichilene Artisevskis e a direção de vídeo e projeções de André Guerreiro Lopes, que, nesta obra, especialmente, atinge sincronia rara com a ação do espetáculo.

Contudo, ainda que se sobressaia como obra redonda, sem pontos baixos, Tectônicas tem em seu maior trunfo o ótimo elenco arregimentado para esta temporada, um ano e oito meses após paralisar a reta final dos ensaios graças à pandemia do Coronavírus.

Na pele do casal Fabíola e Marcelo, Maria Laura Nogueira e Sidney Santiago Kuanza estabelecem conexão imediata com o público, ao dar naturalidade à paixão e ao medo de um casal que enxerga em seu futuro a possibilidade de repetir erros estruturais de violência e abuso no desejo de superá-las.

Na pele do usineiro Jorge, André Garolli também consegue bom momento cênico, em leitura que foge ao estereótipo do homem bronco e poderoso. Ainda que ameace optar por construção artificial, o ator engrandece sua personagem ao mergulhar na fragilidade do passado familiar, provocado pelas interferências pontuais de Mauro Schames e Sandra Corveloni, ótimos em cena, ainda que com poucas incursões pela narrativa.

Parecido acontece com Patrícia Gasppar. Grande atriz, a artista aproveita os momentos pontuais de sua personagem, seja estabelecendo uma relação com o discurso da independência e emancipação feminina frente ao abuso da personagem de Garolli, seja pondo sua voz tamanha à serviço de momentos específicos ao interpretar clássicos do repertório de Roberto Carlos, entre eles Como Dois e Dois (Caetano Veloso, 1971) e As Curvas da Estrada de Santos (Roberto Carlos/ Erasmo Carlos, 1969), ou mesmo incursionando pelo repertório do amigo de fé Erasmo Carlos ao interpretar Sentado à Beira do Caminho (1969), canção composta com o parceiro de Jovem Guarda, mas pérola do repertório do tremendão.

Heitor Goldflus também cresce em cena ao viver Emílio, fazendeiro sem tino para negócios. O ator tem algumas de suas melhores cenas ao estabelecer embate direto com Luciana Carnielli, intérprete de Marli.

Carnielli é, inegavelmente, o grande destaque da encenação repleta de pontos altos. A atriz alicerça sua Marli em registro inseguro e frágil, que cresce à medida que a encenação se desenvolve. A artista emula figuras clássicas de obras como Roque Santeiro, de Dias Gomes, e Ópera do Malandro, de Chico Buarque de Hollanda, sem jamais soar como uma cópia, mas como um retrato ainda perene de uma matrona que flerta com o poder sem jamais atingi-lo.

E é flertando tanto com estilos dramatúrgicos – ao estabelecer um diálogo mítico com o sobrenatural – e com temáticas como o racismo, o machismo, a violência e o poder político do coronelato brasileiro que Tectônicas se sobressai não apenas como grande espetáculo da retomada cultural, mas também como obra que prova, mais uma vez, que um espetáculo político também se constrói com o desafio ao público.

SERVIÇO:

Data: 10 de setembro a 05 de dezembro (sexta a domingo)

Local: Centro Cultural FIESP – Teatro do Sesi – São Paulo (SP)

Endereço: Av. Paulista, 1.313

Horário: 20h (sextas e sábados); 19h (domingos)

Preço do ingresso: Grátis

Disponível para acesso gratuito online no canal oficial do Sesi SP

FICHA TÉCNICA:

Texto: Samir Yazbek | Direção: Marcelo Lazzaratto | Elenco: André Garolli, Heitor Goldflus, Luciana Carnieli, Maria Laura Nogueira, Mauro Schames, Patricia Gasppar, Sandra Corveloni e Sidney Santiago Kuanza | Participações em Vídeo: Ademir Emboava e Alexandre Borges | Iluminação: Wagner Freire | Cenografia: Marcelo Lazzaratto | Figurinos: Marichilene Artsevskis | Música original: Dan Maia | Direção e criação dos vídeos projeções: André Guerreiro Lopes | Fotografia: João Caldas Fº | Assessoria de Imprensa: Pombo Correio | Produção Executiva: Fabrício Síndice e Vanessa Campanari | Direção de Produção: Edinho Rodrigues | Realização: SESI-SP e Brancalyone Produções Artísticas

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