Prestando tributo à linguagem da TV popular, musical sobre Silvio Santos cresce com elenco afinado e autodeboche

Silvio Santos Vem Aí - O Musical | Foto: Adriano Dória

Quando foi anunciado em meados de 2019 um musical que se propunha a historiografar parte da vida e trajetória do apresentador, empresário e comunicador carioca Silvio Santos, o mercado do teatro musical (naturalmente) recebeu com estranheza e certa desconfiança a ideia que, à primeira vista, teria efeito meramente comercial e mercadológico, surfando na onda de espetáculos anteriores, como Chacrinha – O Musical, Ayrton Senna – O Musical e Hebe – O Musical, espetáculos que narravam a vida de suas personagens a partir de clássicos da música popular.

Diferente de Elis, A Musical, Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz, Tim Maia – Vale Tudo O Musical e Cássia Eller – O Musical, que se debruçaram invariavelmente nas obras musicais de seus homenageados, espetáculos baseados na vida de apresentadores tentaram garantir diálogo mercadológico com o público a partir de canções clássicas e figuras carismáticas e de interpretações quase mediúnicas de seus intérpretes (ainda que, justiça seja feita, o musical sobre Hebe Camargo tenha dado delicado mergulho no repertório construído em seus tempos de crooner).

A rigor, Silvio Santos Vem Aí – O Musical comete todas as irregularidades de seus antecessores. A história do empresário, embora bonita e edificante não é necessariamente apetitosa enquanto proposta dramatúrgica, e não houve uma preocupação por parte da produção de fomentar a criação de canções inéditas que narrassem e injetassem fôlego a uma história que nem sempre contagia.

Contudo, se em todos os espetáculos passados estas foram características que minimizaram seu desempenho artístico e (até) comercial, em Silvio Santos Vem aí – O Musical estes se tornam trunfos de um espetáculo moldado como uma boa comédia que flerta com linguagens que vão desde o clássico pastelão até uma insuspeita palhaçaria.

Embora seja brincadeira levada a sério, o musical em si mergulha na auto ironia para emergir como obra capaz de dialogar com o que há de mais fino no registro cômico do teatro paulistano. É verdade que a obra escrita por Emílio Boechat e Marília Toledo (que assina a direção ao lado de Fernanda Chamma), pena para angariar gargalhadas do público, mas é verdade também que a falta delas não inviabiliza a graça nostálgica do espetáculo.

Ao longo de pouco mais de duas horas, Silvio Santos Vem Aí – O Musical enfileira uma série de referências da história da TV brasileira, facilmente reconhecíveis para quem, mesmo superficialmente, já deu mergulho no histórico de atrações do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), ou nos programas de auditório comandados por Silvio Santos ao longo dos anos.

É verdade, entretanto, que, embora o texto de Toledo e Boechat carregue riqueza dramatúrgica ao propor fugir de uma ordem meramente cronológica, e enfocar figuras clássicas que passaram pela trajetória do apresentador, a obra ainda carece de cadência em passagens nem sempre à altura do espetáculo como um todo.

A narrativa acerca do início do Baú da Felicidade, por exemplo, ralenta o espetáculo que, corajoso, foge a facilitadores, ainda que se deixe levar por (bem vindas) intervenções de figuras como Sidney Magal, Gretchen e um Gugu Liberato (1959-2019) construído com base no estereótipo farsesco, ainda que seja justamente esta a personagem responsável por uma das passagens mais tocantes da obra.

Silvio Santos Vem Aí – O Musical embora se ressinta de uma história realmente envolvente na qual se basear, consegue angariar bons pontos altos em seu desenvolvimento, seja pela (inteligente) escolha de enfileirar em cena excelentes marchinhas e temas dos programas de auditório apresentados pelo comunicador ao longo de mais de 60 anos como base estrutural de seu desenvolvimento, seja reunindo ótimo elenco capaz de, em maior ou menor grau, dar vida a figuras históricas com graça.

Juliana Bógus constrói uma Aracy de Almeida (1914-1988) com base no estereótipo clássico criado pela própria intérprete quando assumiu o papel de jurada mau humorada nos programas de calouros de Silvio Santos. A atriz arranca risadas sinceras do público que, se não tem uma lembrança clara da grande intérprete de Noel Rosa (1910-1937), se deixa levar pela condução da artista.

Parecido acontece com Ivan Parente, na pele do comunicador Pedro de Lara (1925-2007). Grande ator de sua geração, Parente foge ao estereótipo, ainda que mergulhe de cabeça na personalidade pública do eterno jurado mau humorado, construindo sua própria leitura de Pedro de Lara, também sedutora. Assim como Bógus, o ator se mantém em cena durante boa parte do espetáculo como bem vindo coringa cômico.

Por sua vez, Daniela Cury, dando vida à mãe do apresentador, Rebeca Caro Abravanel (1907-1989), e à apresentadora Hebe Camargo (1929-2012), angaria seu melhor momento em cena. Na pele de Abravanel, a atriz mergulha em registro dramático que lhe dá a chance de explorar diferentes nuances em cena.

Mas é como Hebe Camargo que Cury realmente brilha. Carismática, a artista emula a doçura e a graça da apresentadora em cenas que nem sempre lhe dão chance de mostrar a grande atriz que é. 

Mas, ainda assim, Cury mergulha com intensidade nas personagens, fugindo à imitação e fazendo de sua Hebe um trabalho próprio, que se afasta, por exemplo, dos igualmente magistrais trabalhos de Stella Maria Rodrigues e Débora Reis em seus respectivos musicais.

Adriano Tunes, por sua vez, tem em Silvio Santos Vem Aí – O Musical mais uma oportunidade de se provar um dos grandes atores do teatro musical moderno. O artista encarna a personagem Velha Surda, criada por Roni Rios (1936-2001) e revivida com menos brilho por Ronaldo Ciambroni. Tunes emerge na comédia física sem medo, estabelecendo diálogo fluido com a personagem da clássica Praça da Alegria.

Na pele do personagem-título, Velson D’Souza é destaque insuspeito na produção. O ator constrói um Silvio Santos mais humanizado e mais próximo do original do que as centenas de imitações e interpretações do comunicador dão conta. O ator retira o comunicador do pódio de figura mítica para trazê-lo a um registro mais próximo do público.

 Inteligente, o ator, contudo, não tenta fazer de sua personagem o real mote da produção. Tal qual Silvio Santos, Souza funciona no palco como um catalisador de talentos, sabendo aproveitar seus momentos de protagonismo, mas se propondo a momentos igualmente brilhantes de coadjuvante.

E é este caráter de grupo que faz de Silvio Santos Vem Aí – O Musical um espetáculo de companhia, fazendo com que não haja momentos ou personagens menores para um elenco (muito) bem aproveitado. É brilhante que, por exemplo, uma atriz com persona pública midiática como Bianca Rinaldi entre em cena na condição de coro, ainda que dê vida à segunda esposa de Silvio, a novelista Íris Abravanel.

Segura, Rinaldi, tal qual Velson D’Souza, abre mão de qualquer ego e desejo de estrelato em prol de um espetáculo, a rigor, feito por seus grandes coadjuvantes, que assumem sucessivos personagens, desde a multiartista russa Elke Maravilha (1945-2016), até a apresentadora infantil Mara Maravilha, passando pelo apresentador Serginho Malandro, o cantor Nahim, o apresentador Manuel de Nóbrega (1913-1976) e a cantora Rosanah. É o créme de la créme do kitsch.

Com (ótimo) cenário assinado por Bruno Anselmo e desenho de luz de Nils Xuxa, o musical cresce principalmente em sua direção musical, assinada por Marco França, e na ótima direção de Fernanda Chamma (neste que é seu melhor trabalho como encenadora) e Marília Toledo.

Chamma e Toledo elevam o teor de graça e leveza proposto por Marília Toledo e Emílio Boechat ao localizar a ação do texto como uma espécie de delírio causado por uma anestesia em meio a uma operação da personagem-título.

Ainda que se ressinta de uma personagem de história mais envolvente dramaturgicamente falando, Silvio Santos Vem Aí – O Musical é espetáculo delicado e inteligente que cresce pelo fato de não eleger protagonistas, mas sim uma história de protagonismo contada por elenco de peso equivalente com o único intuito de fazer o público feliz.

SERVIÇO:

Data: 15 de outubro a 21 de novembro

Local: 033 Rooftop – São Paulo (SP)

Endereço: Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2041 – Itaim Bibi (Cobertura do Teatro Santander)

Horário: 20h30 (sextas); 15h30 e 20h30 (sábados); 15h e 20h (domingos)

Preço do ingresso: R$ 75,00 a R$ 180,00

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