Promissora, Clarice e os Corações Selvagens é obra alicerçada em excessos que pode ganhar com o tempo

Clarice e os Corações Selvagens | Foto: João Caldas

Conceituado como a arte milenar que se propõe a jogar luz sobre os problemas de uma sociedade comumente doente através da linguagem do exagero, o teatro foi a mola propulsora de discussões que entraram na boca do povo popularizada por outros veículos – como o rádio e a TV -, mas que surgiram primeiro na opulência da arte do tablado.

É neste dogma que se sustenta Clarice e os Corações Selvagens, solo que marca o retorno da atriz Kate Hansen à cena após quase um ano de luta contra um câncer de mama, descoberto ainda em 2020. Escrita por Júlio Kadetti especialmente para a artista, a obra flerta com referências que passam pela literatura, a psicanálise, os ensinamentos bíblicos e o noticiário contemporâneo para refletir a construção social de um Brasil cada vez mais desigual.

Em cartaz no universo online desde a última sexta-feira, 16, Clarice e os Corações Selvagens põe em cena a figura de uma mulher de classe média que se vê diante da realidade socioeconômica de seu país, que gera assim desde pessoas ávidas por ocupar vagas em subempregos até jovens que são jogados e precisam se estabelecer na ilegalidade para sobreviver.

Quando se depara com a notícia de um jovem morto pela polícia após o disparo de 13 tiros, a personagem título vivida por Hansen é jogada numa espécie de epifania social, na qual começa a contestar a ação policial e mesmo sua posição social.

Embora mergulhe num conceito clichê e, até, utópico, o texto de Kadetti dribla bem as eventuais armadilhas que a discussão naturalmente proporciona. O dramaturgo opta por uma comunicação truncada ao construir personagem crível à medida que baila na linha fina da senilidade e de uma consciência social frágil demais para se sustentar dentro de sua realidade.

Neste que é seu melhor texto, o dramaturgo foge a muletas que deram o tom de seus dois últimos trabalhos, os irregulares Luz Del Fuego e Lili Carabina para apostar num drama psicológico que, se não seduz por seu caráter social, triunfa ao construir uma trajetória quase psicótica para a personagem, resultando em obra mais ambiciosa do que sua premissa faz supor.

Assim também é o desempenho de Hansen em cena. Embora pareça pouco à vontade na pele da mulher que é jogada à realidade sem conseguir se desvencilhar de sua própria construção social, a atriz cativa a medida que o espetáculo se desenvolve, principalmente pela fragilidade de uma personagem que bebe de referências cinematográficas e, principalmente, hollywoodianas para narrar os fatos que antecedem sua adesão à claridade social.

Clarice e os Corações Selvagens, contudo, cambaleia em irregularidades principalmente na encenação assinada por Marcelo Drummond. O veterano do Teatro Oficina passa por cima das sutilezas que o texto propõe, apelando para registro quase professoral num longo sermão  que compromete o dinamismo da obra.

Inexplicavelmente, Drummond persegue um afastamento da linguagem teatral para se estabelecer quase cinematograficamente remetendo a um curta metragem em preto e branco que pouco adiciona para a discussão acerca do teatro digital – apenas dá munição ao discurso de que a modalidade nada mais é do que uma forma de se produzir projeto audiovisual.

A direção parece se preocupar mais com o processo estético, o que faz com que Hansen renda pouco em passagens essenciais, dando a Clarice e os Corações Selvagens um ar quase preciosista – problema também identificado no texto que, a certa altura, abandona as sutilezas prometidas desde o início para desfecho tão protocolar quanto professoral.

Enfim, embora estéticamente bonito e com uma premissa desenvolvida com ambição, Clarice e os Corações Selvagens é obra que não se privilegia do universo online. Pelo fato de exibir sessões previamente gravadas, a obra perde a chance de decantar e soar mais azeitada ao longo de uma trajetória que, sem dúvidas, afinaria excessos para se sobressair como obra potencializada.

SERVIÇO:

Data: 16 a 21 de abril (sexta-feira a quarta-feira)

Local: Zoom

Horário: 21h

Preço do ingresso: R$ 10,00

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