Resultante do exercício contínuo, Um Picasso é obra que volta a pôr à prova veia contestadora do Tapa

Embate entre Clara Carvalho e Sérgio Mastropasqua é o trunfo de Um Picasso | Foto: Bianca Nóbrega Luccas

Desde que entrou em cena há 43 anos no cenário alternativo do Rio de Janeiro, o carioca Grupo Tapa (há mais de três décadas radicado em São Paulo) sempre promoveu a reinvenção de sua linguagem dentro de seus próprios moldes. Atrelado às raízes do teatro da palavra, e longe de experimentações pós-modernas, o grupo sempre foi alvo dos críticos avessos ao realismo do teatro produzido pela companhia.

É paradoxal, portanto, notar que, lado a lado de seus colegas menos realistas do grupo Os Satyros, o Tapa foi a companhia mais atuante no cenário digital no último ano, com a montagem de pelo menos nove espetáculos apresentados dentro da programação de festivais, projetos e até sessões recorrentes. Sem abrir mão de sua linguagem, mas mergulhando em estéticas menos óbvias, a companhia pôs online desde obras de Bráulio Pedroso (1931-1990) a clássico do repertório de August Strindberg (1849-1912).

A produção constante e a clara evolução na estética online se refletem em Um Picasso, espetáculo que chegou ao palco do Teatro Aliança Francesa na última quinta-feira, 19, marcando o reencontro da companhia com o público devidamente mascarado e distanciado.

Escrita pelo norte americano Jeffrey Hatcher em 2003, e encenada no Brasil em 2017, em duas únicas sessões no Sesc Ipiranga estrelando a portuguesa Companhia de Teatro de Braga, sob a direção do mesmo Eduardo Tolentino de Araújo que assina a versão nacional da obra, a peça narra o encontro entre o pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973) e uma componente do Ministério da Cultura do regime nazista durante a invasão alemã na França, de 1940.

O embate da dupla interpretada por Sérgio Mastropasqua e Clara Carvalho se dá quando o artista é levado pelo regime a fim de reconhecer a veracidade de três obras deixadas para trás por componentes da alta sociedade que deixaram a França em fuga, e outra deixada na porta da Gestapo.

Na pele de Picasso, Mastropasqua consegue um de seus melhores momentos em cena, imprimindo com perfeição o famoso charme de Picasso, além de apelar para insuspeito registro de humor, que cria identificação imediata entre o ator e o público. Muito dessa identificação se dá também pela excelente encenação de Tolentino.

O diretor põe fé não apenas no texto fluente de Hatcher, mas na capacidade magnética de seu elenco, capaz de entreter a plateia com jogo cênico afinado, sem arroubos ou truques cênicos que tirem a atenção do diálogo que, em mãos menos experientes, poderia soar (até) professoral, mas Tolentino, sagaz, naturaliza a discussão acerca da obra de Picasso sem pender para o preciosismo.

Todo o espetáculo é construído na base do duelo entre Mastropasqua e Carvalho, o que faz com quem o cenário minimalista resulte inteligente, contrastando com o desenho de luz pensado por Nicolas Caratori, que, de tão simples, potencializa o jogo entre atores e plateia – especialmente no desfecho de tom (quase) poético.

Contudo, ainda que seja uma peça repleta de destaques, é inegável que Um Picasso tem como principal trunfo Clara Carvalho, que, na pele de Fraulein Fischer, a componente do Ministério da Cultura alemã, passeia por registros que vão desde o cômico até o sedutor, sem se privar de passagens mais dramáticas ou mesmo bufônica, beirando o patético.

Um Picasso é (novo) ponto alto na trajetória da atriz, que já vinha de experimento igualmente magnético com a encenação digital de A Mais Forte, de Strindberg, também assinada por Tolentino, além de sua (excelente) incursão pelo universo de George Bernard Shaw (1856-1950), ao estrelar A Profissão da Senhora Warren, sob a encenação de Marco Antônio Pâmio em 2018. A artista joga com Mastropasqua, sem jamais deixar de seduzir a plateia, principalmente quando mergulha na fragilidade de sua personagem, construída com delicadeza pelo olhar da atriz.

E são nos discursos da personagem da atriz que estão guardadas as passagens mais contestadoras acerca da discussão proposta pela companhia e intensificada pelo momento sócio político contemporâneo, fazendo com que o Grupo Tapa mergulhe numa das discussões críticas mais profícuas do último ano ao questionar e validar, sem preciosismos ou apelação simplória, a importância da arte frente ao caos político/ sanitário.

SERVIÇO:

Data: 19 de agosto a 26 de setembro

Local: Teatro Aliança Francesa – São Paulo (SP)

Endereço: Rua General Jardim, 182 – Vila Buarque

Horário: 20h (quinta-feira a sábado); 17h (domingos)

Preço do ingresso: R$ 20,00 (meia) a R$ 40,00 (inteira) quintas e sextas; R$ 30,00 (meia) a R$ 60,00 (inteira) aos sábados e domingos

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