Sandra Pêra se agiganta ao mergulhar em abismo existencial e irônico de Lispector

À Procura de uma Dignidade | Foto: Ana Bausbam

Embora, com a passagem das décadas, os escritos de Clarice Lispector (1920-1977) venham ganhando análises de viés simplista, que a catalogam numa espécie de bolha elitista, a escritora ucraniana (radicada em Pernambuco) construiu obra de teor crítico, sardônico e sarcástico ao retratar, principalmente, a elite carioca da qual fazia parte (e a qual, hoje, é acusada de promover).

É essa leitura simplista que, à primeira vista, poderia prejudicar a adaptação de uma obra como À Procura de uma Dignidade, conto de 1974 publicado em seu livro Onde Estivestes de Noite? Na obra, Lispector dá voz à uma mulher em seus 70 anos, frequentadora dos chamados eventos culturais e reuniões de dondocas da zona sul carioca ao longo das décadas de 1970 e 1980.

A personagem, por um engano, se perder nos corredores do Maracanã, e, ao retornar para casa, se vê frente a uma crise existencial, na qual põe em xeque algumas de suas escolhas de vida sem jamais confrontá-las de verdade, abrindo espaço até mesmo para passagens que, em interpretações desatentas, soam como mera perfumaria (a relação que estabelece com Roberto Carlos é uma das mais saborosas).

Entretanto, em À Procura de uma Dignidade, a adaptação teatral assinada por Leonardo Netto para o conto homônimo, e em cartaz na programação digital do Teatro com Bolso até o final deste mês de setembro, aprofunda com mais precisão a leitura sardônica e patética dessa história que, a medida que se desenvolve, ganha contornos menos óbvios dentro da crise existencial de uma personagem tão comum da zona sul carioca.

Netto não busca recriar passagens ou adaptar a obra de Lispector para além da voz dramatúrgica de uma personagem que conta sua própria história na primeira pessoa. Sob a direção de Ana Beatriz Nogueira (bem) assistida por Clarisse Derzié Luz e estrelada por Sandra Pêra, À Procura de uma Dignidade estabelece diálogo direto com o público, driblando as armadilhas e friezas às quais o teatro online costuma jogar solos como este.

Sagazes, Nogueira e Luz não só captam a simplicidade e o caráter propositalmente raso do mergulho existencial proposto tanto por Lispector quanto por Netto, como expandem questões que, num cenário contemporâneo, comprovam a sagacidade de Lispector ao traduzir temas como o pânico e o existencialismo de maneira acessível e quase atemporal.

É desse mergulho que emerge Sandra Pêra, atriz de mecanismos dramáticos pouco explorados ao longo de sua carreira como atriz após o estouro massivo do conjunto As Frenéticas.

Talvez pelo caráter irreverente de sua carreira como cantora a partir do desbunde geral promovido pelo grupo naquele momento, Sandra tenha se dedicado a papéis cômicos ou de caráter leve que nem sempre a punham em risco dramático, como quando se propôs, em 2018, ao encenar A Porta da Frente, clássico contemporâneo de Julia Spadaccini que, por uma destas equações do mercado, não teve o espaço que merecia na programação teatral paulistana.

Entretanto, em À Procura de uma Dignidade, Pêra experimenta mergulho profundo num trabalho comovente de uma atriz que, sem se levar a sério, cativa pelo caráter trágico e (até) patético com o qual dá vida à sua personagem. A artista se aventura em seu primeiro monólogo e demonstra domínio impressionante de cena, com um timing cômico na medida que serve apenas como meio de sublinhar a crise existencial vivida por sua personagem.

Pêra estabelece contato direto com o público, fazendo com que a obra online não seja apenas mais uma experiência visual que, hoje, já demonstra sinais de cansaço. Inclusive este é um dos principais trunfos de À Procura de uma Dignidade, a confiança total e completa no tripé texto-direção-interpretação. 

Mesmo a luz (pensada por Ana Beatriz Nogueira e Rodrigo Lopes) e os objetos cênicos resultam como mero complemento simples a uma encenação que não se priva de dar espaço para que texto e intérprete façam seu melhor trabalho. E assim emerge À Procura de uma Dignidade, ótimo espetáculo que não só dribla as fórmulas do online como também comprovam a excelência de Sandra Pêra, grande atriz capaz de dar saltos dramáticos mais desafiadores do que os papéis que lhe entregam fazem supor.

SERVIÇO:

À Procura de uma Dignidade

Data: 07 de agosto a 26 de setembro (sábados e domingos)

Local: Teatro com Bolso (Transmissão Online)

Horário: 21h

Preço do ingresso: R$ 10,00

Confira abaixo a ficha técnica completa de À Procura de uma Dignidade

Texto: Clarice Lispector | Adaptação: Leonardo Netto | Direção: Ana Beatriz Nogueira | Atuação: Sandra Pêra | Diretora Assistente: Clarisse Derzié Luz | Iluminação: Rodrigo Lopes e Ana Beatriz Nogueira | Operação de Luz e Som: Rodrigo Lopes | Trilha Sonora e Ambientação Cênica: Ana Beatriz Nogueira | Figurino:  Sandra Pêra | Fotos: Ana Basbaum | Programação Visual: Luciana Pedrosa | Streaming: Luciana Pedrosa | Idealização e Produção: Ana Beatriz Nogueira | Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

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