Sedutor, Barnum se alicerça no teatro clássico para construir obra moderna e de fôlego

O excelente ensemble de Barnum - O Rei do Show | Foto: Andy Santana

Figura tão popular quanto controversa na história do showbiz norte americano, Phineas Taylor Barnum (1810-1891) é figura essencial para compreender o mercado do entretenimento estadunidense. O empresário foi responsável por montar museu itinerante, no qual irmanava números de circo, dança, estrelas da música e atrações estranhas, que deu abertura para a criação do chamado mercado do freak show, ainda no século XIX.

Embora seja estudado à exaustão nos Estados Unidos, a figura de P.T Barnum só ganhou relevância internacional em 2017, quando uma versão ficcionada de sua biografia ganhou os cinemas em O Rei do Show, filme de Michael Gracey estrelado por Hugh Jackman, Zac Efron, Michelle Williams, Rebecca Ferguson e Zendaya com canções originais da dupla de compositores Pasek & Paul (responsáveis pelas canções de um dos grandes hits da Broadway moderna, Dear Evan Hansen).

Com o sucesso do filme no novo milênio, não é surpresa que os olhos de uma série de produtores brasileiros tenham se voltado para Barnum, musical de Mark Bramble (1950-2019) com letras de Michael Stewart (1924-1987) e canções de Cy Coleman (1929-2004), que chegou à Broadway em 1980.

Embora tenha sido um sucesso, permanecendo em cartaz por três anos em Nova York e com uma bem sucedida montagem no West End, em Londres, Barnum está longe de ser uma obra de cunho popular no mercado norte americano. O espetáculo caiu no esquecimento e jamais ganhou uma remontagem na Broadway, sendo revivido apenas em 2013, quando ganhou encenação em festival inglês e uma turnê por cidades do Reino Unido entre 2014 e 2015. 

Nem mesmo a montagem de 2017 em Londres (surfando no sucesso do anúncio do filme), ou outras encenações em cidades longe do conglomerado teatral norte americano ao longo das décadas de 1980 e 2000 foram fortes o bastante para fazer de Barnum um título de força comercial para voltar à Broadway, ou ganhar versões em países de língua não inglesa.

Com a primeira produção brasileira anunciada ainda antes da pandemia do Coronavírus, Barnum chegou enfim aos palcos de São Paulo no início deste mês de outubro em montagem estrelada por Murilo Rosa e Kiara Sasso sob a direção do carioca Gustavo Barchilon, que estreia na função após passagens por produções no West End, com a trupe do Cirque Du Soleil e com a dupla de diretores Charles Möeller e Claudio Botelho.

E é justamente o olhar afiado de Barchilon que faz de Barnum – O Rei do Show (com subtítulo que faz jogo mercadológico sagaz com o filme de 2017) espetáculo de fôlego, se impondo como o principal produto da retomada do mercado dos grandes musicais.

Ainda que montado de forma imponente, a obra não guarda o mesmo caráter suntuoso de outros espetáculos do gênero, se limitando a usar único cenário para ambientar a sucessiva passagem de tempo na vida de P.T Barnum, interpretado por Murilo Rosa em momento luminoso da carreira. A direção de Barchilon se livra do ideário dos grandes cenários e da pirotecnia da cenografia de produções brasileiras para focar no essencial da montagem: o jogo entre elenco, texto e canções.

Assinando a adaptação do texto, o diretor atenua as irregularidades da obra original. Em pouco mais de uma hora e meia, a montagem ainda se ressente da dramaturgia pouco inspirada de Bramble, mas é detalhe menor frente à excelente adaptação de Barchilon que injeta ritmo na narrativa.

Parecido acontece com a direção musical de Thiago Gimenes. O músico reveste a obra de Cy Coleman de modernidade, atenuando também as más escolhas do norte americano, que, na versão original, criou arranjos que buscavam emular o cabaré clássico criado por Bertold Brecht (1898-1956) e Kurt Weill (1900-1950), criando pouca identificação com seu tempo histórico.

Ainda que as versões de Claudio Botelho nem sempre estejam à altura do trabalho de Gimenes, o espetáculo resulta coerente e estabelece conexões musicais com a contemporaneidade dos novos musicais, sem jamais abandonar a influência das criações clássicas de nomes como Stephen Schwartz.

Gimenes não só dá lufada de ar fresco às criações do compositor, como injeta personalidade nos arranjos, que dialogam com as (excelentes) coreografias de Alonso Barros, revisitando antigas criações para dar corpo à ótima trupe do circo. Barros recicla sua influência em Bob Fosse (1927-1987) aludindo a obras anteriores, como o excepcional Pippin (2018) e o irregular Peter Pan (2018).

Em montagem repleta de pontos altos, Barnum – O Rei do Show enfileira ficha técnica de peso, angariando alguns dos melhores momentos de sua equipe. Ainda que o ótimo cenário de Rogério Falcão remeta imediatamente a outro trabalho inspirado de sua trajetória (o supracitado Pippin), os figurinos de Fábio Namatame, o visagismo de Dhiego Durso e o desenho de luz de Maneco Quinderé mostram que mesmo já gozando de sagração no mercado artístico, ainda é possível se reinventar.

E a maior reinvenção está no ponto mais alto da montagem, o excelente elenco encabeçado por Murilo Rosa, Kiara Sasso e Giulia Nadruz, que, a rigor, são os nomes centrais da obra. Rosa cria um Barnum alicerçado no carisma galante de personagem feita sob medida para conquistar a plateia. O ator não só é bem sucedido, como também se reinventa e se supera em cena como cantor.

Ainda que seja a voz de menor potência no elenco, o artista usa o instrumento com inteligência, sem mostrar limitações, sustentando a graça e a delicadeza de sua personagem, principalmente nos duetos com uma inspirada Kiara Sasso.

Na pele da esposa da personagem título, Charity Hallett (1808-1873), Sasso entra em cena marcando não apenas sua retomada aos grandes papéis musicais, mas esbanjando maturidade cênica, que comprova que a artista cresceu como atriz após bem sucedidas experiências no teatro infanto-juvenil (O Palhaço e a Bailarina) e em drama alternativo (A Audição). 

Sasso constrói uma Charity baseada em ironia pouco óbvia, fugindo a registros confortáveis – seu grande solo, One Brick at a Time, é um dos melhores momentos da montagem. Já Giulia Nadruz volta a se comprovar um dos principais nomes do teatro musical moderno. Grande atriz (e cantora), a artista constrói uma Jane Lynd (1820-1887) sedutora, sem jamais apelar para muletas rasas. 

Com timing cômico preciso, a artista faz de Barnum um dos momentos mais inspirados de sua trajetória. Acostumada a se sobressair em montagens nem sempre à altura de seu talento, Nadruz consegue a façanha mesmo cercada de elenco afiado (façanha que repete após bem sucedida passagem pelo ótimo Tick Tick Boom).

Estreando nos musicais, a cantora e atriz pernambucana Diva Mener também angaria ótimos momentos para si, seja na pele da centenária Joice Heth (1756-1836), seja como solista em Black and White, momento de entressafra valorizado pela voz tamanha da artista.

Entretanto, ainda que a trupe de protagonistas conquiste momentos luminosos, é inegável que o trabalho mais sedutor se encontra no excelente grupo de atores que formam o ensemble da montagem. Não seria injusto afirmar que este é o melhor ensemble reunido num espetáculo musical nas últimas duas décadas.

Formado por bons atores, excelentes cantores e bailarinos, a trupe do circo (composta por Renata Ricci, Ana Araújo, Bruno Ospedal, Fernanda Muniz, Gabriela Germano, Giu Mallen, João Siqueira, Leonardo Freitas, Luan Pretko, Sara Milca, Tiago Barbosa, Vicenthe Oliveira e Vinícius Silveira) se lança em investidas circenses que jamais soam como mero macete para impressionar o público. 

Nada, aliás, em Barnum soa gratuito. Barchilon mergulha em estética brechtiana para narrar uma história que foge às amarras do realismo musical, focando no teor lúdico da palhaçaria e na inteligência de um público sempre atento.

E aí reside um dos momentos mais sedutores da obra. É importante citar o excelente trabalho de Marcos Lanza, Lucas Cândido e Bel Lima em tributo à palhaçaria clássica, remetendo também ao clássico teatro de revista (é impagável, por exemplo, a sátira de Lanza sobre um dos sucessos da trilha sonora de O Rei do Show, Never Enough).

Enfim, ainda que se alicerce em jogo de marketing baseado no filme de 2017, Barnum – O Rei do Show é produção que se mostra mais coesa que a versão cinematográfica (inexplicavelmente incensada no final da última década), e injeta lufada de contemporaneidade em obra que o tempo se encarregou de levar ao esquecimento, mas que, se depender da montagem brasileira, pode ganhar palcos internacionais reformulada e mais interessante.

SERVIÇO:

Data: 01 de outubro a 28 de novembro

Local: Teatro Opus – São paulo (SP)

Endereço: Av. das Nações Unidas, 4777 – Alto de Pinheiros (dentro do Shopping Villa-Lobos)

Horário: 20h30 (sextas); 17h e 20h30 (sábados); 16h e 19h30 (domingos)

Preço do ingresso: R$ 25,00 (meia) a R$ 200,00 (inteira)

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