Terra Medeia reinventa mito de Eurípides ao trazer personagem trágica para mais perto

Terra Medeia | Foto: João Caldas

Embora, em 2009, a crise dos refugiados ao redor do mundo não tivesse atingido o ápice que levaria o problema de volta ao centro da discussão sócio-política ocidental em meados de 2015, o problema ainda era uma constante que gerava protagonismo jornalístico para os conflitos do Oriente Médio.

Lançando um olhar para esta realidade, Sara Stridsberg escreveu e encenou Medealand, releitura contemporânea do clássico mito de Eurípides sobre a mulher (Medeia) que deixa sua terra ao lado do amante, tem seus filhos e é abandonada numa terra estrangeira e sem possibilidades de se sustentar.

A obra de Stridsberg enfoca o olhar expatriado de uma personagem que, diferente da leitura comum, não torna a sede de vingança o centro de sua ação e discussão, mas sim o desejo de sobrevivência, sua e de seus filhos.

Mais de 10 anos após a primeira montagem na terra natal da autora, o texto ganha a primeira versão nacional. Intitulada Terra Medeia, a obra marca o reencontro de artistas brasileiros e suecos em parceria aberta há seis anos, quando a diretora Bim de Verdier encontrou no Brasil o elenco ideal para contar a história da rainha Cristina, que, em meados do século XVII, subverteu as convenções monárquicas ao ter um caso com uma amiga e alterou o rumo da história em seu reinado.

Em Dissecar uma Nevasca, Verdier conduziu encenação que flertou com assuntos como a questão de gênero, o machismo, o sexismo e a construção de uma vida baseada em convenções sociais. Escrita pela mesma Sara Stridsberg, a obra pôs em contato a diretora sueca com nomes como André Guerreiro, Daniel Costa, Daniel Ortega, Einat Falbel, Gabriel Miziara, Nicole Cordery, Renato Caldas e Rita Grillo.

Parte deste elenco retorna em Terra Medeia, experimento cênico digital que não apenas se debruça sobre a investigação de linguagem dentro da encenação online, mas também – e principalmente – propõe uma releitura do mito de Medéia frente a uma realidade contemporânea capaz de redimir a mulher que, na ânsia de vingança, mata os próprios filhos para atingir o ex-amante, Jasão.

Estrelada por Nicole Cordery, a obra sublinha o estado de espírito da personagem principal como um efeito daquilo que, em cena, o texto da dramaturga sueca entende como o “status Medéia”, uma análise sobre o entorno de uma personagem jogada à beira de um abismo social.

Expatriada, sozinha, criando duas crianças e machucada, a Medeia de Stridsberg se alicerça muito mais na construção de uma base social do que necessariamente no arquétipo do desespero feminino que chega ao ápice de matar os próprios filhos.

Ainda que a encenação de Verdier busque ressaltar um ar de insanidade à medida que a personagem se desenvolve, o que entra em discussão é a pressão social que, desde que foi encenada originalmente, se tornou um dos pontos chave do desespero político, social e econômico da parcela mais pobre da população ocidental.

Embora seja, inegavelmente, uma obra potencializada pela aura permissiva do teatro, é inegável que Terra Medeia ganha novas nuances diante do teatro online enquanto reflexo de uma crise sanitária e, mais uma vez, social.

Em sintonia, o elenco valoriza a montagem ainda que lidando com as dificuldades do hibridismo da linguagem digital. Daniel Ortega toma às vezes de narrador – em clara referência ao coro do teatro grego – enquanto sublinha a dramaticidade do “status Medeia” da personagem principal, assim como Bim de Verdier, que encarna a mãe da personagem em composição dilacerante.

O texto, contudo, peca na construção de suas personagens periféricas. André Guerreiro Lopes e Renato Caldas fazem o que podem para imprimir veracidade em Jasão e Creonte, respectivamente, ainda que surjam como personagens de tom maniqueísta e sirvam de escada para os devaneios lúcidos de Medéia.

Rita Grillo também faz o que pode na pele da babá dos filhos da protagonista, entretanto a personagem pouco oferece para a artista que, mesmo assim, imprime uma ternura insuspeita na personagem.

Entretanto é a Medéia de Nicole Cordery que, naturalmente, faz de Terra Medeia uma obra de peso político. A personagem insurge em discursos sociais (“reescreva as leis!”, clama), e apela para uma dramaticidade de tom patético. É sintomático, portanto, que a atriz apresente um tour de force frente às câmeras.

Hábito comum neste último ano de desenvolvimento e popularização da linguagem digital no teatro brasileiro, a construção repetida de personagens surge montagem após montagem, quando estar em frente à uma câmera parece um convite para truques de enquadramento nem encenações que geralmente têm pouco a dizer.

Nadando contra a corrente, Terra Medeia viaja entre discursos e apela para a beleza plástica através do fino desenho de luz de João Caldas, dos figurinos de Júlia Correia de Verdier e da trilha original composta por Leo Correia de Verdier.

Combatendo o status de desespero que fazem de Medeia uma personagem de tons historicamente trágicos, Terra Medeia é obra que não busca reinventar a estética digital, mas sim implementar a discussão social amplificada por uma linguagem possível e de tons eventualmente trágicos. 

SERVIÇO:

Terra Medeia

Data: 22 de maio a 13 de junho (sexta-feira a domingo)

Local: Plataforma Teatro

Horário: 17h

Preço do ingresso: Grátis

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