Tragédia sobre os limites legais da ética, A Pane cresce ao mergulhar na linguagem clássica

A Pane | Foto: Rogério Alves

Diretora argentina radicada no Brasil há 40 anos, Malú Bazán desenvolveu, ao longo de mais de uma década, assinatura própria na condução de espetáculos orquestrados com base, essencialmente, no jogo de corpo e voz de – e entre – seus elencos. Com espetáculos que exigem de seus atores disciplina e um condicionamento físico capaz de assumir movimentos milimetricamente coreografados, a artista mergulhou em montagens que se sobressaíram como algumas das mais instigantes da última década.

Títulos como Aproximando-se da Fera na Selva, Alice – Retrato de Mulher que Cozinha ao Fundo, Soledade e o mais recente Mulheres Sonharam Cavalos são obras de rara fluidez cênica, em que o jogo do ator com a plateia soa natural, principalmente pelo trato com a palavra – nem sempre de fácil assimilação. Mesmo quando se depara com desafios que atravancam a fluidez de sua proposta, a atriz consegue imprimir assinatura que garante a comunicação entre plateia e obra.

Foi assim em A Encomenda – mergulho raso no universo online a partir da obra de Daniela Schitini que, de tão limitado, resultou em obra irregular frente ao currículo de sua encenadora; e, a julgar pela proposta, parecia ser esse também o caso de A Pane, o conto de Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) publicado em 1955 e adaptado pelo autor, no mesmo ano, para uma peça de rádio, depois para o teatro, para a TV e cinema.

A Pane narra o encontro de um grupo de juristas aposentados com um homem que, após um problema em seu carro, aceita o convite para jantar e participar de um jogo no qual os profissionais da lei revivem seus momentos de glória, estabelecendo um julgamento fictício, que toma contornos cada vez mais sérios à medida que a obra se desenvolve.

Idealizado para estrear originalmente em 2020, quando a pandemia do Coronavírus congelou o mercado cultural ao redor do mundo, o espetáculo chegou ao palco do Teatro do Sesc Santana, na zona norte da capital, no apagar das luzes de 2021, e emendou bem sucedida temporada no palco do Teatro FAAP, em Higienópolis, nos primeiros meses deste 2022.

Com elenco formado por atores veteranos do calibre de Antonio Petrin, Heitor Goldflus, Oswaldo Mendes e Roberto Ascar, com a adesão de Cesar Baccan e Marcelo Ullmann, A Pane assinalava para uma guinada mais tradicional e – até – conservadora na carreira de sua encenadora, fosse pelo teor menos experimental de seu autor – um dos baluartes cuja obra ajudaria a desaguar o teatro realidade de metade do século XX -, fosse pela escolha de seu elenco formado essencialmente por atores acostumados a espetáculos e marcações com o teor clássico deste antigo teatro moderno.

E, de fato, a montagem não nega seu teor mais conservador. E é esse o ponto alto do espetáculo. Bazán se arrisca sem jamais deixar que seu elenco caia numa zona de conforto. Fugindo às construções friccionadas, a encenação põe suas personagens à mercê de uma história sem começo, meio e fim aparentes. 

A dramaturgia original é respeitada pela (fluente) tradução do jornalista Diego Vianna, e Bazán orquestra seu elenco sem deixar transparecer protagonismos – método que já utilizara em outros projetos, mas atingiu seu ponto máximo com a montagem de Mulheres Sonharam Cavalos, em 2021.

Ainda que Dürrenmatt estabeleça uma hierarquia dramatúrgica em suas personagens, Bazán mantém o grupo sempre ativo e em cena, fazendo com que a história corra sob a presença de cada personagem, potencializando o teor quase corrupto de um julgamento que já tem um veredito definido – em termos políticos, nada mais contemporâneo.

O grupo de atores está em constante ponto de atenção, seja em construção farsesca, seja no drama sardônico que conduz à cena final. Tudo funciona bem na condução do espetáculo. 

E isso se deve ao excelente trabalho de seu grupo de atores veteranos. Roberto Ascar, Heitor Goldflus, Oswaldo Mendes e, especialmente, Antônio Petrin fazem da obra um jogo semântico com um ótimo timing, sem jamais deixar a bola cair. Petrin constrói, na pele do promotor de justiça, um de seus melhores momentos em cena nos últimos anos. 

Orquestrado como um jogo de xadrez – sugerido pela ótima cenografia concebida pela diretora e por Anne Cerutti (que também assina os figurinos) e pelo excelente desenho de luz de Wagner Pinto -, o espetáculo intensifica a discussão sobre os limites éticos através de um épico jurídico, que ganha contornos contemporâneos através da trilha de Dan Maia, fazendo com que sua história originalmente datada ganhe contornos atemporais.

Ainda que César Baccan e Marcelo Ullmann rendam menos que seus colegas, A Pane é essencialmente um espetáculo de grandes interpretações, conduzidas em registro crescente que jamais atinge o melodramático. Mérito da direção de Bazán, que escolhe desossar cenas  para construir conjunto de questionamentos acerca da influência ética na vida de um cidadão médio, desaguando em desfecho minimalista, mas que sublinha o caráter de tragédia etílica da montagem.

Em cartaz com sessões extras durante o Carnaval, A Pane encerra temporada no palco do Teatro FAAP e se prepara para turnê pelos espaços da prefeitura.

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