Valorizando o diálogo direto, Não se Mate foge a preciosismos e aposta em saborosa fusão de linguagens

Não se Mate | Foto: Priscila Prade

Obra tão monumental quanto revolucionária dentro da literatura brasileira, a poesia de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) entrou para a história como um dos principais faróis a apontar a modernidade na escrita de verso e – eventualmente – até de prosa. Com um lugar cativo nas listas de leituras acadêmicas, Drummond ainda é reverenciado como um poeta de diálogo incessante com o contemporâneo, o que garante a sua obra caráter atemporal (e não documental, como a maioria de seus colegas).

Portanto, não seria difícil imaginar que uma obra que toma os poemas do mineiro como meio de costura dramatúrgica, preze essencialmente pelo preciosismo pretensamente poético. Ao longo da última década – em especial nos últimos dois anos de solidificação da linguagem digital – muitas obras foram construídas com esta base, desprezando o diálogo direto com o público em prol de uma linguagem mais plástica do que verdadeiramente teatral.

Não se pode dizer que Não se Mate – Chegou um Tempo em que a Vida é uma Ordem seja um destes espetáculos. Em cartaz até o último dia 14 de abril, a obra que marca a estreia do ator e diretor Giovani Tozi na dramaturgia trabalha com bases mais sólidas para narrar a história de Carlos, um artista plástico que se vê sem perspectiva de vida após uma sucessão de perdas.

A morte da mãe, o fim de um relacionamento, a saída do emprego e a falta de horizonte levam a personagem a uma revisão pessoal que o põe frente a frente com as frustrações de seus desejos mais íntimos – como o de ser um artista plástico renomado.

Embora à primeira vista “Não se Mate” soe como solo de ar pretensamente indulgente, o texto de Tozi conduz o espetáculo a um relato direto e simpático com o público. O dramaturgo constrói uma empatia com a figura deste jovem sem uma perspectiva clara de futuro, desaguando em passagens saborosas e – até – cômicas.

Neste ponto, Tozi dialoga com perfeição com a obra de Drummond, que, de fato, é usada para costurar passagens sem jamais abrir mão de uma linguagem visual que valorize o caráter sensível da obra.

Na pele do pintor Carlos, Leonardo Miggiorin valoriza as nuances do texto e não se priva de fazer bom uso da fina estampa carismática que construiu ao longo dos anos para injetar alguma leveza à obra, proporcionando a identificação imediata do público.

Ainda que ameace cair em desfecho protocolar – e use da figura de Luiz Damasceno como uma muleta que em nada adiciona ao espetáculo – Não se Mate é obra mais densa do que seu desenvolvimento faz parecer. E a direção de Tozi sublinha a densidade ao posicionar a personagem em diferentes pontos alucinantes da vida cotidiana. 

O (excelente) desenho de luz de César Pivetti e o videomapping de André Grynwask e Pri Argoud (da produtora Um Cafofo) adicionam o valor plástico para a linguagem digital, fazendo do espetáculo um bom projeto visual que dialoga diretamente com o conceito original da obra. O figurino pensado por Fábio Namatame, por sua vez, injeta realismo perseguindo o conceito da simplicidade suicida da personagem de Miggiorin.

A despeito do desfecho menos articulado, Não se Mate – Chegou um Tempo em que a Vida é uma Ordem se sobressai como uma das principais obras da temporada graças a linguagem que, embora mergulhe na poesia no experimento plástico digital, jamais se priva do que realmente importa no teatro: o diálogo com o público sem apelar para preciosismos.

SERVIÇO:

Este espetáculo está fora de cartaz.

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