Ao completar 90 anos de idade, Fernanda Montenegro ganhou e ainda vem ganhando uma série de homenagens que apenas reforçam a impressão de que seu nome figura numa lista de unanimidades das artes cênicas brasileiras. Tem-se a impressão de que não há quem possa levantar qualquer ponto contra alguma interpretação desta atriz que, ao longo de mais de 75 anos de carreira, angariou algumas das personagens mais icônicas do imaginário patropi.
De fato, é uma tarefa árdua encontrar qualquer deslize desta veterana, seja na TV, no cinema ou, principalmente, no teatro. Desde que debutou em cena na década de 1950, no espetáculo Alegres Canções nas Montanhas, de Julien Luchaire, Montenegro vem angariando elogios da crítica e uma devoção do público, que faz filas intermináveis para vê-la, seja em cena, interpretando um espetáculo, seja numa noite de autógrafos e palestra, como a que recentemente lotou os 1.523 assentos do Theatro Municipal de São Paulo.
Ao longo da História, sua própria história se construiu, em suma, em cima dos palcos. Foi no teatro que a atriz angariou popularidade, prestígio e, principalmente, imortalidade. Veículo de massa que costuma perenizar a figura de atores e atrizes ao longo das décadas, a televisão contou com passagens bastante importantes da profissional, a primeira contratada do Grande Teleteatro da pioneira TV Tupi, e protagonizou, ao lado de Fernando Torres, a primeira novela produzida no Rio de Janeiro, A Morta sem Espelho, de Nelson Rodrigues.
Mas foi na Rede Globo que colecionou personagens memoráveis. Estreando na emissora em 1980, então uma atriz já consagrada e com 30 anos de carreira, na novela Baila Comigo, de Manoel Carlos, a atriz teve alguns êxitos até chegar na inesquecível Charlô, a granfina da novela Guerra dos Sexos, de Silvio de Abreu, na qual protagonizou a icônica cena na qual faz uma guerra de comida ao lado do também já consagrado Paulo Autran.
A partir daí cresceu em popularidade televisiva, e ganhou de presente a trambiqueira Naná, de Cambalacho, também de Silvio de Abreu, e a marcante Salomé, de Rainha da Sucata, outra parceria com Abreu, autor com quem fez nada menos do que seis novelas.
Com Zazá, de Lauro César Muniz, em 1997, teve outro ápice de popularidade que não se repetiu quatro anos mais tarde, na controvertida As Filhas da Mãe, do parceiro Silvio de Abreu. A dupla se redimiu quatro anos mais tarde, quando Fernanda Montenegro entrou para o hall das grandes vilãs de telenovela ao dar vida a ambiciosa Bia Falcão, em Belíssima (2005).
Outras personagens vieram nas telenovelas, e algumas cenas entraram para a história, como a de um beijo trocado com sua eterna companheira de cena, Nathália Timberg, na esmaecida novela Babilônia (2015), de Gilberto Braga, ou a cena em que enfrenta a morte encarnando a bruxa Mercedes em O Outro Lado do Paraíso, de Walcyr Carrasco, numa de suas interpretações mais marcantes na TV.
Entretanto, a televisão, veículo de popularização da imagem, não foi o responsável pelo sucesso dessa atriz que, mesmo aos 90 anos de idade, jamais abandonou os palcos. Com o cinema, teve resultados ainda melhores desde que protagonizara seu primeiro filme, em 1965, numa versão realista de A Falecida, de Nelson Rodrigues.
Foram 16 anos até o reconhecimento cinematográfico massivo ao interpretar a sofrida Romana, na versão para as telas de Eles não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, e mais 17 até o grande momento do cinema nacional, com sua indicação ao Oscar pela irretocável Dora, de Central do Brasil (1998), o filme de Walter Salles que levou o Globo de Ouro naquele ano de 1999, nos Estados Unidos.
A Indicação ao Oscar, considerado prêmio máximo da indústria do cinema internacional,sem dúvidas é o que a separa de outras grandes atrizes que, também nonagenárias, não receberam o mesmo tratamento massivo de Montenegro em suas respectivas efemérides. Nathália Timberg, Laura Cardoso e Bibi Ferreira, apenas para citar três de carreiras igualmente brilhantes, não tiveram a mesma atenção midiática que Montenegro.
É claro que os ataques proferidos pelo diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, Roberto Alvim, a atriz, também causaram a comoção necessária para reacender a chama de reconhecimento de Montenegro como nossa grande atriz. Chama essa que incendiou corações tanto na indicação ao Oscar, quanto na laureação da atriz com um Emmy Internacional – o prêmio mais importante da indústria da televisão internacional – por sua magnânima interpretação na série Doce de Mãe (2012/ 2014), de Ana Luiza Azevedo, Jorge Furtado e Miguel da Costa Franco.
Outro grande papel cinematográfico marcou a atriz no imaginário popular, ao dar vida a Nossa Senhora Aparecida na adaptação para as telas da peça O Auto da Compadecida (1999), de Ariano Suassuna, ainda hoje um dos filmes mais populares da história do cinema nacional – ao lado, claro, de Central do Brasil.
Contudo, foi nos palcos que Fernanda Montenegro pavimentou o caminho até a laureação como a grande dama das artes cênicas do Brasil, título esse que recusa sempre que lhe é impugnado. Nos palcos, a atriz colecionou interpretações incansáveis e seguidas, com uma série de espetáculos que entraram para o imaginário popular.
Desde a década de 1950, quando estreou nos palcos após alguns anos interpretando radionovelas, até 2019, a atriz jamais deixou os palcos, em interpretações que apenas confirmavam o que o público massivamente via nas telas – as da TV e as de cinema. Na comédia Com a Pulga Atrás da Orelha (1955), de Georges Feydeau, se mostrou uma atriz cômica irrepreensível, e, no mesmo ano, angariou um Prêmio Moilière por se jogar no drama em A Moratória.
Com Vestir os Nus (1958) ouviu seu nome ser ovacionado nas sucessivas temporadas em São Paulo e no Rio de Janeiro, e também viu todo o Theatro Municipal do Rio de Janeiro lotar e aplaudir de pé seguidas sessões de O Mambembe (1959).
Intitulada musa sereníssima, arrancou de Nelson Rodrigues um de seus maiores clássicos ao passar oito meses insistindo pelo texto de O Beijo no Asfalto (1961), e rodou o Brasil por diversas vezes com a comédia A Mulher de Todos Nós, montada com êxito por duas vezes, em 1966 e em 1975.
Mas foram os três anos viajando com É… (1977), de Millôr Fernandes, que garantiram a Fernanda o clamor popular com a peça apresentada em sucessivas sessões a preços populares em diversas cidades. Todas lotadas, e isso anos antes de estrear em novelas da Rede Globo.
Em 1982, colhendo os frutos de Baila Comigo, ouviu relatos íntimos de mulheres que iam a seu camarim lhe abraçar após as sessões da libertária As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, e injetou o teatro naquele que hoje lhe jogou ofensas nas redes virtuais ao se tornar eterna por sua Fedra (1986), que lotava todos os fins de semana os 1200 lugares do Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro.
Com Dona Doida (1987) ficou quase 20 anos rodando o Brasil, tanto para se recuperar do golpe dado pelo Plano Collor de confisco do dinheiro corrente, quanto para atender as sucessivas chamadas do público e de produtores locais que pediam pelo espetáculo, fosse por sua popularidade, fosse para tapar o buraco deixado pelo musical Suburbano Coração (1989).
Musical esse que foi sua única investida no gênero que sete anos depois se revigoraria e se tornaria o carro chefe de sobrevivência do mercado teatral no início dos anos 2000. Os musicais, inclusive, eram o que separava, na cabeça dos críticos, Fernanda daquela que sempre foi considerada sua colega direta em termos populares, Marília Pêra (1943-2015).
Se Pêra enfileirou espetáculos musicais, como A Vida Escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato (1970), Pippin (1974), A Feiticeira (1975), A Estrela Dalva (1987), Elas por Ela (1989), Vítor ou Vitória (2001) e Alô Dolly (2013), entre outros, Montenegro chegou a ser cogitada para dar vida a Madame Armfeldt, a rica ex-cortesã do musical A Little Night Music, de Stephen Sondheim, que, na Broadway, foi vivida por Angela Lansbury, em 2009. A montagem brasileira nunca foi pra frente, e o papel nunca foi de Fernanda. Paciência.
Nos palcos ainda deu vida às estranhezas cênicas de Gerald Thomas (The Flash and Crash Days, 1993), ao lado da filha Fernanda Torres, e se despediu do marido Fernando Torres, quando encenaram Dias Felizes (1995), de Samuel Beckett.
Nos anos 2000, voltou aos palcos e enfrentou o luto vivendo Simone de Beauvoir em uma série de espetáculos apresentados apenas nas periferias de São Paulo e do Rio de Janeiro. O monólogo Viver sem Tempos Mortos (2009) levou a atriz de encontro a um público já acostumado a vê-la na TV e a saber dela como a já consagrada dama indicada ao Oscar, que, desde 2014, vem olhando para sua própria carreira e vida através de Nelson Rodrigues, espetáculo que há cinco ano lota todas as casas por onde passa com semanas de antecedência.
A permanência de seu livro de memórias, Ato, Prólogo, Epílogo – Memórias na lista dos mais vendidos do país desde seu lançamento, em 20 de setembro, comprova o afeto e o carinho do Brasil por uma atriz que se orgulhou de chamar de sua. Seja pela projeção internacional, seja pelo trabalho criado ao longo de sete décadas, Fernanda Montenegro é popularíssima sem precisar de explicação. É apenas irremediável.