Flertando com a distopia, Condomínio Visniec assume poesia para tratar de cruezas urbanas

Condomínio Visniec | Foto: Ronaldo Gutierrez

Em 2015, enquanto ministrava na sede do Grupo Tapa um workshop sobre a obra do dramaturgo, escritor e médico russo Anton Tchekhov, Clara Carvalho entrou em contato, pelas mãos de um aluno, com A Máquina Tchekhov, texto escrito em 2001 pelo dramaturgo romeno radicado há mais de 30 anos na França, Matéi Visniec, no qual o autor russo é posto frente a frente para um acerto de contas com algumas de suas personagens.

A leitura da obra foi fundamental para que Clara Carvalho, atriz com um dos nomes mais importantes do teatro nacional, se decidisse por experimentar, pela primeira vez, assumir a direção de um espetáculo. Ao lado de Denise Weinberg, amiga e parceira de mais de 30 anos no grupo fundado por Eduardo Tolentino de Araújo, Carvalho assinava a elogiada montagem de A Máquina Tchekhov, num processo que lhe rendeu ainda o convite para dirigir, desta vez sozinha, A Reação, texto da inglesa Lucy Prebble.

Quatro anos se passaram desde estas seminais experiências na direção e, desde então, a atriz veio renovando seu repertório em leituras e workshops. Mas em março deste ano de 2019, a diretora voltou a se encontrar com a obra do dramaturgo romeno em Condomínio Visniec, reunião de seis textos escritos por Visniec e compilados no livro O Teatro Decomposto ou O Homem – Lixo (É Realizações, 2012), que hora retorna a cena no Espaço Viga Cênico, no Sumaré, todas as quartas e quintas-feiras de novembro.

Na obra, traduzida por Luiza Jatobá, a solidão urbana conduz a temática de uma encenação que pendula entre a visceralidade das imagens criadas pelo dramaturgo, e a poesia injetada pela direção sensível e bem coreografada de Clara Carvalho, que, também neste ano, já havia dado importante passo como encenadora na montagem de Ricardo III ou Cenas da Vida de Meyerhold, também de Visniec.

Conduzido por um ótimo elenco que transita pelas angústias de uma escrita em crise, Condomínio Visniec exalta, principalmente, a linguagem friccionada e fluida do romeno através de pequenos monólogos de temática existencial. O Homem da Maçã, por exemplo, traz à tona a figura de um verme que, vivendo em uma maçã, contesta a existência através de questionamentos da estirpe de “eu sou apenas um pobre prisioneiro num oceano de alimento”.

Parecida se dá a discussão em torno de O Comedor, monólogo que, de tão incessante, chegou a inspirar um episódio do desenho animado Os Simpsons, de Matt Groening. Os questionamentos tomam contornos contemporâneos ao tratar, com olhar sardônico, a solidão aliada a ansiedade (o supracitado O Comedor), ao pânico (A Louca Tranquila), a crueldade intrínseca na solidão (O Homem do Cavalo), e mesmo ao prazer (O Adestrador, com referências do visagismo a construção do palhaço Carlitos, de Charles Chaplin) e a conformidade (O Corredor).

A direção de Clara Carvalho funde com perfeição não apenas as personagens, como também estes temas através da figura de uma escritora (Suzana Muniz em interpretação intensa) descontente com a obra que escreve, mas impossibilitada de parar. É neste papel quase suicida que a figura da escritora se funde a do corredor, que passa por entre personagens amedrontadas com um panapanã carnívoro (Ana Clara Fischer, luminosa em cena), com os resultados de uma ansiedade canibal (Rafael Leveki, em composição correta), com o afeto de um animal (Rogério Pércore, numa ótima composição alicerçada no olhar) e com as possibilidades existenciais (Felipe Souza, em construção milimétrica e coreográfica).

Na pele de um adestrador que se vê satisfeito ao ser comido por seus animais de estimação, Mônica Rossetto consegue um dos melhores momentos de um espetáculo pensado para funcionar, unicamente, com a presença de um elenco equilibrado e uniforme. Funciona.

Funciona também a construção de um ótimo figurino (pensado por Marichilene Artisevskis) que dialoga bem com a beleza plástica da luz criada por Wagner Pinto. Entretanto, é na direção de Clara Carvalho (aliada a intensa preparação corporal e ao coro cênico projetados por Mau Machado e Suzana Muniz), esta atriz e diretora referencial do teatro tupiniquim, que mora grande parte do encantamento de Condomínio Visniec, espetáculo que, a despeito de flertar com o absurdo ininteligível, se conecta com facilidade ao público através de certo tom de distopia poética.

SERVIÇO:

Data: 06 a 28 de novembro (quartas e quintas-feiras)

Local: Viga Espaço Cênico – São Paulo (SP)

Endereço: Rua Capote Valente, 1323 – Sumaré

Horário: 21h

Preço do ingresso: R$ 25,00 (meia) a R$ 50,00 (inteira)

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