Quem tem medo da Lei Rouanet

Ah, a famigerada Lei Rouanet! Uma coisa que não se pode negar é o quão popular a Lei 8.313 se tornou nos últimos anos. Fama essa que está bem longe de ser justa. Um levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas em 2018 estimou que cada R$ 1,00 investido nesse mecanismo, R$ 1,59 retornou em forma de arrecadação. Isso sem contar no impacto indireto e na empregabilidade que o setor proporciona.

Mas então por que será que um mecanismo que está para lá do vigésimo no ranking de renúncias fiscais concedidas pela União, que traz retorno econômico financeiro garantido, é tão atacado pela opinião pública e até por alguns defensores do livre mercado? Existem duas linhas de combate, uma delas está ligada a ignorância: ainda existem pessoas que acreditam que existe uma linha de financiamento às ideias marxistas e que os artistas se beneficiariam dela, por isso, e exclusivamente por isso, se manifestariam politicamente. À essas pessoas nunca foi mostrado que esse mecanismo foi criado por liberais num momento em que o mundo se despedia da Guerra Fria e no Brasil as medidas mais alinhadas ao capitalismo eram sinônimo de progresso.

Naquele momento entregar o incentivo na cultura ao alinhamento de ideias de grandes empresas parecia ser uma forma de conduzir um “mercado cultural” em ascensão. Como dinheiro chama dinheiro, junto das grandes empresas cresceram também os grandes produtores, escritórios de captação de recursos e claro, eventos grandiosos. O que o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), nome real do mecanismo, sempre esteve bem longe de ser foi apoio à artistas, ideias e, principalmente, à esquerda.

Nos últimos anos alguns projetos ganharam destaque na imprensa e muita coisa tirada de contexto passou a ser discutida por pessoas que não tinham informação alguma sobre o assunto, daí vieram as fake news e se tornou muito interessante à maquina da ignorância invalidar qualquer discurso se apoiando nisso. As pessoas começaram a ser “acusadas” de receber Rouanet, mesmo que esse termo nunca fizesse sentido algum, até apresentador de TV ou artista global entrava no imbróglio dos “mamadores nas tetas do governo”.

É claro que toda essa confusão é política e foi criada e é alimentada por aqueles que ganham o direito a narrativa com ela, mas existe também um segundo grupo de soldados combatentes à Lei, são eles os meritocráticos, os filhos de uma geração de consumo que não conseguem enxergar o valor imaterial, entendem o investimento na cultura como investimento em artistas, sendo que os artistas são apenas uma das ferramentas de transmissão do valor imaterial. À essas pessoas não parece possível que qualquer medida de esforço ou de apoio econômico não seja revertida em produto, uma geração que cresceu entendendo que a obtenção de bens materiais é a única razão para o trabalho nunca vai conseguir entender que pessoas recebam dinheiro para fazer um trabalho humano, talvez sejam até os mesmos que pensem que cursos de humanas não deveriam ter investimento público.

Se esse grupo é mais perigoso do que o primeiro não dá para saber, suas origens são as mesmas, a falta de uma educação mais humana, de uma consciência social e ampla. Na verdade essas pessoas não são contra ao PRONAC, são contra qualquer investimento na cultura, seja ele na forma que for, o que nos leva a um terceiro grupo que a opinião pública nem imagina que exista e que esses sim, fazem críticas contundentes e que não são ouvidos nem em nota de rodapé: são os trabalhadores da cultura.

Para esses a promessa de um tripé que consistia no Pronac + Fundo Nacional da Cultura (FNC) + Fundo de Investimento Cultural Artístico (FINCART) era o que realmente deveria valer, mas a realidade foi outra. O Fundo Nacional de Cultura (FNC) deveria financiar projetos sem potencial comercial de retorno e fora do eixo Rio-São Paulo, mas há anos não se vê editais relevantes, desde o governo Temer programas importantes como o Cultura Viva e Mais Cultura nas Universidades permanecem adormecidos, para não dizer, esquecidos.

Já o FINCART nunca chegou a sair do papel. Para a maior parte das atividades culturais cabe a sina da resistência. A Cultura enquanto símbolo de manifestação da ação humana a Lei Rouanet nunca chegou e nem irá chegar. Para os artistas de base que realizam trabalhos fundamentais em periferias ou trechos do Brasil profundo a preservação da identidade ou da expressão artística cabem recorrer a força da coletividade e remar constantemente contra a maré dos interesses maiores, sejam eles políticos ou empresariais.

Houve até o tempo em que se tinha espaço para discutir melhorias ligadas à forma da Rouanet, o Procultura, projeto que seria a salvação do modelo está morto sem antes chegar à praia.

O atual cenário político cultural, no que cabe ao governo federal, é vergonhoso, profissionais sérios e com anos de pesquisas foram afastados de suas funções sendo substituídos por governantes fundamentalistas em busca de uma caça as bruxas sem sentido algum. À frente da Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultural (SEFIC) um ex policial militar sem nenhum histórico prévio de conhecimento no setor e que recentemente é citado como detentor do poder “Ad referendum”, atitude inédita no setor e bem contrastante com uma pauta que deveria ser a base da democracia.

Sobre o futuro do PRONAC arriscaria dizer que a possibilidade de extinção é quase nula, mas não por luta justa e sim porque um mecanismo que financia o simbólico pode se tornar uma boa oportunidade para a consolidação de grupos que se dizem prejudicados pelo pensamento progressista. Com a desculpa de “chegou a nossa vez” muita coisa ainda pode desandar.

De qualquer forma, vilã ou mocinha, o mecanismo de renúncia fiscal completa seus 30 anos aos trancos e barrancos e sua fama só significa o quanto o Brasil está longe de proteger sua cultura.

Especialista em Acessibilidade Cultural, Bruna Burkert é atriz, dramaturga e produtora.
Ativista Cultural, amante do teatro de rua e da cultura periférica e inclusiva.

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