Buda nagô combatente, João Acaiabe construiu trajetória de transgressão no teatro brasileiro

João Acaiabe | Foto: Divulgação

Obituário – É difícil precisar o grau de importância da trajetória construída pelo ator, diretor e produtor paulista João Acaiabe (1944-2021) ao longo de mais de 50 anos. Sua saída de cena na noite de quarta-feira, 31 de março, vítima de complicações da Covid-19, apontou para o fato de que Acaiabe foi figura tão transgressora quanto mercadológica dentro do cenário patropi das artes cênicas.

Egresso do teatro independente e o único ator negro de toda uma turma a se formar na Escola de Artes Dramáticas (EAD) na USP, o artista construiu trajetória combativa de levante contra a repressão do período da ditadura comandada pelos militares no Brasil (1964-1986), ao mesmo tempo que compôs grupo e atores favoráveis ao levante contra o racismo e a esteriotipação das persnagens negras na dramaturgia e na TV.

Desde sua estreia profissional em 1967, na produção do Grupo Amador de Graça de Pedro Pedreiro, de Renata Pallottini, o ator se posicionou como força motora incapaz de aceitar papéis que não estivessem à altura de seu talento, e assim pavimentou trajetória que o levou ao estrelato da tragédia de Ésquilo, Prometeu Acorrentado (1969).

Sempre à frente da luta por equiparação salarial e por papéis dignos, travou batalha com censores e mesmo com colegas, como Ruth Escobar (1935-2017) em prol de produções que dessem a devida visibilidade ao ator negro e mantivesse vivo o projeto de pesquisa desenvolvido pelo Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento (1914-2011).

Foi essa personalidade contestadora que levou o colega Plínio Marcos (1935-1999) a convidá-lo a dar vida a Jesus Cristo na primeira montagem de Jesus Homem, de 1981, título tão interessante quanto esquecido na obra do dramaturgo santista.

Embora tenha conservado a intensidade cênica – o que lhe garantiu ainda um punhado de grandes papéis, sendo o do reverendo Winemiller, na montagem de O Anjo de Pedra, de Tennessee Williams (1911-1983), encenado em 2011 por Inês Aranha, um dos mais celebrados na última década – Acaiabe se transformou ao longo dos últimos 20 anos em figura serena que, ciente da importância de seu legado, assumia sem receio papéis menores na TV (problema esse recorrente no audiovisual, acostumado a relegar grandes atores a papéis menores).

No alto de sua trajetória de cinco décadas (celebrada em 2020 sem a pompa necessária, muito graças a pandemia do mesmo Coronavírus que o tirou de cena), João Acaiabe entra para a história como buda nagô do teatro nacional, capaz de assumir persona combativa e transgressora na mesma intensidade que foi capaz de abarcar a imagem serena de um grande contador de histórias nos últimos anos de sua vida.

Notícias relacionadas