Diretor e dramaturgo, Márcio Boaro rebate artigo sobre teatro filmado: “É prato entregue via iFood”

Nem um Dia se Passa sem Notícias Suas, peça disponível no site Espetáculos Online - Foto: Camila Coutinho

A questão sobre teatro filmado não é nova. Surgiu primeiramente no início do cinema, depois houve uma segunda onda no surgimento TV e agora uma terceira na popularização das câmeras digitais. A terceira onda talvez venha a atingir seu ápice hoje com a popularização total dos equipamentos (smartphones) somada a pandemia que nos obriga os teatros a estarem fechados. Pensei em escrever sobre este assunto, sem a pretensão de esgotá-lo, longe disso, mas tento levantar algumas questões para pensarmos sobre isto. 

O que é teatro? Por definição, o teatro ocorre no momento em que o espectador vê uma história ser representada por atores ao vivo, os dois vivendo o mesmo ambiente, neste momento acontece uma ligação entre os dois que é o fenômeno teatral. Esta ideia não é minha, já é conhecida há muito tempo, mas acredito nela. Para que o fenômeno aconteça tanto o ator precisa do público, como o público precisa da presença do ator, esta sincronia é necessária. Se concordarmos com esta definição, o teatro é tão antigo quanto a humanidade, muito antes das celebrações dionisíacas.  

Posto isto, como fica o ofício teatral em um momento de isolamento? A questão que se abre é que o teatro precisa sim da existência do encontro com o público ao vivo, mas não é só isto, existem outros elementos, por isso que se pode discutir a relevância do teatro filmado.  Se os atores e público estão impedidos de se encontrar, como fazer?  Assim como ocorreu em outros momentos da história as pessoas que exercem o ofício teatral devem momentaneamente se adaptar para sobreviver. Mas tenho claro que as variantes apresentadas nestes momentos não é uma evolução, se trata de sobreviver no momento em que sua atividade está impedida. O teatro filmado parece ser a melhor alternativa. 

É evidente que o cinema tem parentesco próximo com o teatro, mas nas suas primeiras décadas, por uma questão técnica, ele caminhou para criação de uma outra arte. No período inicial o cinema não tinha som (mudo) nem cor, a definição de imagem era bastante inferior. Então os cineastas evoluíram por onde eles tinham um ganho significativo desde o início, a edição, uma característica que o teatro não pode ter, evoluíram por este caminho. O cinema foi se distanciando do teatro e pelo aprimoramento técnico virou uma outra arte. Tanto que cabe nos lembrarmos que um grupo de cineastas nórdicos criaram por ocasião do centenário do cinema o Manifesto Dogma 95 que previa uma série de regras para quem quisesse participar. A intenção era limitar tecnicamente os filmes, para que ele ganhasse outros elementos artísticos. Passados alguns anos deste movimento, um de seus criadores, Las Von Trier, criou dois filmes que são excelentes exemplos do que poderia ser teatro filmado de qualidade; Dogville e Manderlay. Ambos são realizados em espaços fechados e utilizam convenções de delimitação do espaço cênico semelhantes ao teatro. Os atores trabalharam com um tipo de representação próxima do teatro realista, mas utilizam cortes, edições e ângulos próprios do cinema. É quase uma homenagem do cineasta ao teatro, mas é cinema.  

No início da televisão no Brasil, houve muito teleteatro na programação. Diversos profissionais de teatro foram chamados para trabalhar em montagens teatrais que eram transmitidas ao vivo. Naquele primeiro momento foi um dos pontos fortes da programação com boa repercussão, mas perdeu espaço com surgimento do videotape e foi substituído pelas novelas. Isto possibilitou que o público conhecesse diversas obras da dramaturgia e tivessem contato com o trabalho de grandes atores. Depois deste período inicial nestes 70 anos de TV no país, o teleteatro ressurgiu na programação de diversos canais, mas sem nunca se firmar. 

Nos últimos anos, surgiu tanto na Broadway como em algumas companhias Europeias a venda via streaming de espetáculos que funciona tanto como uma fonte de divulgação do trabalho como uma segunda fonte renda para as companhias. É uma excelente forma de ter contato com montagens inglesas contemporâneas de Shakespeare por exemplo. Mas é um prato entregue via iFood de seu restaurante predileto, você encontra dentro daquelas embalagens de isopor um pouco do sabor dos pratos que você tanto gosta, mas servido na hora dentro do restaurante tem outro sabor.  No caso do teatro falta mais, porque não é um produto que pode ser transportado e requentado, mas serve para podermos conhecer o que está sendo feito. São produções muito bem feitas, com diversas câmeras.  

Durante as pestes na virada do século XVI para XVII, Shakespeare vendeu sonetos, vendeu poemas, fez apresentações fechadas em castelos, fez o que era possível dentro de sua área de atuação para sobreviver durante as quarentenas, elas passaram e os teatros reabriram.  É evidente que devemos fazer o mesmo hoje, o teatro filmado é uma porta que se abriu para os profissionais, mas não substitui o teatro de forma alguma.

Márcio Boaro

Márcio Boaro

Diretor teatral e dramaturgo em resposta ao artigo “Teatro filmado vira realidade e pode ajudar a pautar futura relação do público com a arte

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