No dia 13 de maio, celebrações da abolição da escravatura levantam o questionamento sobre o papel do negro no teatro brasileiro

Gota D'Água [Preta] | Foto: Evandro Macedo

Há 132 anos quando se deu a assinatura da Lei Áurea, determinante para o processo de abolição da escravidão no Brasil, iniciou-se a narrativa do “branco salvador”, ou seja, o ex-escravocrata que se coloca socialmente como a figura sine qua non para a valorização da figura da pessoa negra.

Com o passar dos anos e com o empoderamento e intelectualização das pessoas negras, narrativas diferentes desmontaram a ideia do negro servil, muito embora ela ainda seja uma constante na sociedade ao redor do mundo – com ênfase no racismo estrutural construído pela cultura eurocêntrica colonizadora e norte americana separatista.

Tendo este panorama à vista, é importante levantar a questão: qual o papel da pessoa negra no teatro brasileiro? Sem o compromisso de chegar a uma conclusão definitiva, ou de se caracterizar como artigo, este texto tem como principal mote levantar a discussão sobre a figura ainda subserviente da pessoa negra no teatro patropi – o que é irônico, uma vez que pessoas pretas são a maioria da população brasileira.

Ainda lutando (pro forma) contra o racismo, o Brasil enxerga em seus grandes papéis mulheres e homens essencialmente brancos, mesmo em personagens escritas para serem negros. Um dos casos mais lembrados é o da personagem Romana em Eles não Usam Black-Tie, clássico de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) sobre o processo de levante de funcionários grevistas contra a exploração comercial.

Na obra, Romana é uma personagem pobre, sofrida e humilde idealizada por Guarnieri como uma mulher negra. Na montagem original, assinada por Renato José (1926-2006) no Teatro de Arena em 1958, Romana foi interpretada por Lélia Abramo (1911-2004), uma atriz branca que imortalizou o papel no teatro e foi sucedida, 23 anos depois, por Fernanda Montenegro, que imortalizou a personagem no cinema, no filme de Leon Hirszman (1937-1987).

A primeira montagem célebre a contar com uma atriz negra no papel só chegou aos palcos 60 anos após a estreia do espetáculo. Sob a direção de Dan Rosseto, Teca Pereira assumiu o papel da matriarca da família de trabalhadores numa das interpretações mais tocantes de sua carreira teatral, e também se sobressaindo como o ponto alto da montagem. A atriz venceu o Prêmio Aplauso, mas, inexplicavelmente (ou não) foi ignorada em prêmios como APCA e Shell.

Este é um exemplo célebre, mas não é difícil encontrar outras representações do gênero na história recente do teatro nacional – ou, pior, o uso indiscriminado do artifício da blackface, quando um ator branco se pinta de preto para interpretar uma pessoa negra, geralmente em tom de deboche.

Não houvesse uma forte ação dos movimentos negro e anti-racista dentro do teatro nacional, o grupo Os Fofos Encenam seguiriam utilizando da tática na montagem de A Mulher do Trem, estreada em meados do anos 2000 e contestada apenas em 2015, quando foi impedida pelo movimento negro de ser apresentada no palco do Itaú Cultural, em São Paulo.

Mas o fato é que, além de assumir um lugar dentro da luta anti-racista, a constante produção de espetáculos de coletivos voltados a estudar a negritude parece apenas assumir tons de conscientização, com um teatro feito basicamente para tatuar na sociedade qual o real papel do negro e a ancestralidade de povos africanos, reis e rainhas, monarcas da negritude.

Portanto, ainda que haja um desejo de redimensionar a figura do negro dentro do teatro, ainda há uma localização dentro deste cenário, basicamente, de uma luta anti-racista ou uma conscientização de seu papel. Até o momento, raros foram os negros que ocuparam papéis até então interpretados apenas por brancos.

É possível citar, fora deste panorama, montagens como Love Story (encenada em 2015 por Tadeu Aguiar, com elenco completamente negro) e O Jornal The Rolling Stone, peça localizada na África, mas sem que a questão da negritude seja abordada como uma bandeira – ali, a discussão da encenação assinada por Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas, era prioritariamente a homofobia e o papel da religião dentro de pequenos povos.

Entretanto, ainda é rara a figura de homens e mulheres negros em obras de autores como Edward Albee (1928-2016), Harold Pinter (1930-2008), Bertolt Brecht (1898-1956), Tennessee Williams (1911-1986) e mesmo Nelson Rodrigues (1912-1980), Dias Gomes (1922-1999) entre outros autores nascidos e criados num país de maioria populacional negra.

Ainda dentro desta seara, vale a citação da montagem de Gota D’Água [Preta], adaptação da obra de Chico Buarque de Hollanda e Paulo Pontes (1940-1976) com elenco formado apenas por negros. Embora a ideia tenha sido excelente (tal qual a direção musical), a montagem soou esmaecida por esvaziar a obra da dupla num desejo de reafirmação da cultura negra num processo que também caiu no balaio da conscientização professoral com um elenco irregular.

Entretanto, os prêmios foram mais afoitos à montagem dirigida por Jé Oliveira. Shell e APCA consagraram a obra que propôs, tal qual a montagem de 2018 de Eles não Usam Black-Tie, uma espécie de reparação histórica. 

Mas ainda está longe a total colocação de pessoas negras dentro do chamado “teatro convencional” e também no teatro musical, que parece ignorar que obras como O Rei Leão e A Cor Púrpura lançaram luz para uma série de grandes atores e atrizes negros que ainda seguem barrados por uma triagem americanizada de audições, com elencos escolhidos por uma meritocracia que não compreende os meandros da educação brasileira.

Em outras palavras, grandes atores e atrizes/ cantores e cantoras negros (as) não chegam sequer às audições pois são barrados em triagens de currículos que não contém escolas de teatro renomadas ou grandes professores (as) de canto. Assim seguimos com montagens de obras do quilate de A Pequena Sereia, Chicago, Wicked e Mamma Mia! sem protagonistas negros por uma determinação de “características” de personagens, enquanto figuras étnicas de espetáculos como Rent, Nas Alturas (In the Heights) e mesmo O Rei Leão seguem interpretados eventualmente por pessoas brancas.

Neste 13 de maio, dia da abolição da escravatura, ainda é preciso perguntar: qual papel o negro exerce num campo como o teatro? Onde estão os dramaturgos negros? A estes estão legados apenas temas específicos? Idem os diretores? É importante lembrar que a primeira mulher negra a ser premiada pelo Prêmio APCA na categoria direção foi Naruna Costa, em 2019 – algo histórico e vergonhoso para uma instituição de mais de 60 anos de trajetória.

 Impossível concluir, mas, com a urgência que o tema pede, é importante que se levante a discussão.

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