O Teatro Digital, a Live Cênica e a discussão arcaica do teatro online

Pandas... ou Era Uma Vez em Frankfurt - Foto: Montagem - Culturice

O teatro, mais do que o espaço onde é realizado, sempre foi formado por atos de resistência, crítica, análise social e, principalmente, pelo encontro com o público, geralmente no espaço físico de uma sala de espetáculos propriamente dita, com caixa cênica e o trabalho de técnicos de luz, áudio e, eventualmente, vídeo; ou na rua; em arenas; ou onde for possível a troca.

Com a pandemia do novo Coronavírus, não só uma série de produções tiveram que sair de cartaz como o encontro não pôde se concretizar. O espaço físico tornou-se insalubre e não aconselhável uma vez que o isolamento social e a quarentena preventiva tiveram de ser adotados para (tentar) impedir a disseminação do vírus que, até a publicação deste artigo, já tirou 102.034 brasileiros de cena.

Com a impossibilidade do teatro físico, cunhou-se então a expressão Teatro Digital, usada originalmente em posts do ator e diretor Ivam Cabral em suas redes sociais para definir o movimento que adotou junto a seu grupo Os Satyros com a estreia de A Arte de Encarar o Medo, um dos primeiros experimentos cênicos online pensado especialmente para uma plataforma online – no caso o Zoom – e produzido completamente de forma remota.

É verdade que o grupo foi o primeiro a apresentar um elenco numeroso neste novo formato, e também o primeiro a retratar diretamente a pandemia como um agente de análise social, mas, justiça seja feita, é importante dar nome ao desbravador real deste novo gênero: os cariocas do Teatro Caminho, companhia que encenou – de forma esporádica – o solo “O Filho do Presidente”, pensado originalmente para os palcos, mas que foi, com o tempo, se adaptando ao universo online.

Logo após essa primeira investida, o trio formado pelo diretor Bruno Kott e pelos atores Mauro Schames e Nicole Cordery entraram em cena com o primeiro espetáculo de fato pensado para a plataforma na primeira temporada online do Teatro Digital.

Em Pandas… ou Era uma Vez em Frankfurt, os artistas não apenas levaram para o online a obra do dramaturgo romeno Matéi Visniec, como também foram os que até então – e ainda hoje – melhor compreenderam a ferramenta, criando uma linguagem longe do rudimentar e com bem-vindo diálogo com o cinema moderno – sem jamais perder o caráter puramente teatral com um espetacular senso de ritmo e tempo.

Com o avanço da pandemia e o claro descaso com o setor cultural por parte do Governo Federal e da Secretaria Especial da Cultura – então comandada pela atriz Regina Duarte e hoje nas mãos do ator Mário Frias -, a migração dos artistas para o universo digital começou a tomar caráter massivo. Neste cenário, tem sido possível tentar viver de uma bilheteria com a venda de ingressos para acesso às transmissões online (realizadas, em sua maioria, em horários estipulados para apresentações em espaços físicos).

É importante salientar que o teatro digital pouco tem a ver com as lives cênicas que vem sendo realizadas desde os primórdios desta pandemia – e se impuseram como uma espécie de primeiro experimento para o que viria a ser o Teatro Digital.

As lives cênicas – que já levaram mais de 60 mil pessoas a acompanhar a programação de projetos como o #EmCasacomoSesc, da rede Sesc São Paulo – têm caráter efêmero (embora seus registros se mantenham disponíveis online) e são provenientes em sua maioria de espetáculos idealizados e, muitas vezes, já realizados no palco.

O que difere, por exemplo, um solo como Eu não Dava Praquilo, apresentado duas vezes por Cássio Scapin nas redes oficiais do Sesc São Paulo e da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e o supracitado Pandas… ou Era uma Vez em Frankfurt?

Basicamente o fato de o espetáculo-biografia da atriz Myriam Muniz (1931-2004) não só já ter sido apresentado no palco – sob a direção de Elias Andreato – como também ser basicamente o conceito usado no palco, mas filmado (não confundir com o Teatro Filmado, registro de obras de palco disponibilizadas online). Scapin – como tantos outros, de Denise Fraga a Sérgio Mamberti, de Grace Passô a Lucélia Sérgio, de Ailton Graça a Clara Carvalho – usou a câmera apenas como veículo de transmissão, usando de artifícios puramente cênicos para contar a história.

Pandas, por sua vez, utiliza do artifício cênico, mas tem na câmera sua principal aliada, além de se lambuzar nas possibilidades tecnológicas que o Zoom permite. A troca de cenários, a brincadeira com a percepção do público e o uso da luz – além do inventivo prólogo que faz boa análise dos tempos digitais – fazem do espetáculo bom exemplo de uma obra produzida especialmente para o universo online.

Por outro lado, outros tópicos podem ajudar a caracterizar as diferenças entre as duas linguagens fruto do mesmo movimento de sobrevivência. As lives cênicas, por exemplo, são caracterizadas por apresentações esporádicas e com a simplicidade de se utilizar basicamente de um texto frente a uma câmera.

Casos como o da atriz Renata Sorrah, que levou para as lives da rede Sesc o espetáculo inédito Em Companhia, no qual costurou trechos das obras encenadas pela Companhia Brasileira de Teatro. Com única apresentação e encenação simples – a despeito da obra inédita – a apresentação se caracteriza como uma live cênica.

Diferente, por exemplo, de Onde Estão as Mãos, Esta Noite?, obra de Juliana Leite estrelada por Karen Coelho e com temporadas esporádicas na plataforma Zoom. Sob a direção de Moacyr Chaves, o espetáculo não apresenta estripulias digitais, apostando no naturalismo, mas por estar em cartaz e por não usar da câmera apenas como veículo de transmissão, mas sim uma aliada para contar a história de uma mulher confinada, se caracteriza como parte do movimento do Teatro Digital.

É claro que, em se tratando do mundo online, tudo pode mudar e as definições se tornarem obsoletas. Contudo, este movimento que surge – e que pode se solidificar, resistindo mesmo após o fim da pandemia – não  apenas é uma forma de sobrevivência artística (e, quiçá, financeira), mas também e principalmente uma nova forma de dialogar com o público cada vez mais escasso.

A possibilidade de apresentar a esse público obras inéditas e com uma linguagem para além dos roteiros das telenovelas e das séries internacionais pode ajudar a criar e até solidificar uma nova parcela de uma plateia que de fato esteja disposta a – após usufruir da experiência online – entrar com os dois pés no teatro físico para além dos grandes blockbusters, como os musicais americanos e as peças com artistas famosos pela carreira televisiva.

É nesta linha de pensamento que talvez seja importante repensar a discussão sobre o que é ou deixa de ser teatro. Muito inflamado em grupos de artistas nas redes sociais, o debate já não soa apenas rudimentar- frente ao movimento que crucificou a iniciativa de artistas de migrarem para o online -, mas ultrapassado, ainda que este seja um movimento passageiro e não se solidifique de fato com o retorno das atividades culturais após o controle da pandemia do novo Coronavírus.

Com a gama de espetáculos e apresentações surgindo e sem a garantia de um retorno seguro aos palcos até ano que vem, a ideia de que o teatro digital e as lives cênicas não devam acontecer, ou não devam ser caracterizadas como teatro é batida e se tornou artigo de um museu preciosista incapaz de absorver as velhas novidades do mundo moderno.

Pela ideia de que “teatro só acontece no teatro” linguagens como o teatro de rua, o teatro mambembe e o teatro popular realizado em espaços abertos, públicos ou possíveis deixam de ser consideradas teatro para entrar na clandestinidade. 

A mesma clandestinidade à qual jogam o teatro digital, ignorando os dogmas estabelecidos anteriormente (e estão todos presentes): resistência, crítica, análise social e o encontro com o público, que nunca esteve tão presente para conferir obras produzidas de forma independente sem necessitar de grandes patrocínios – a maioria para arcar com um gasto que ainda não foi de fato levado à discussão: as pautas dos teatros (algumas especialmente abusivas).

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