Online, Cia. Os Crespos celebra 15 anos de trajetória artística “abrindo caminho a facão”

Lucélia Sérgio em Engravidei, Pari Cavalos - Foto: Aline Zumas

Em meados de 2005, um grupo de estudos reunido dentro da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (USP), inspirado na trajetória do Teatro Experimental do Negro (TEN), formado na década de 1940 por Abdias do Nascimento (1914-2011), iniciou uma série de pesquisas acerca da presença da figura do negro na história do teatro.

A busca por essas figuras e sua representatividade nas artes cênicas levaram o grupo a provocações que renderam o embrião dos Filhos de Olorum, companhia surgida em 2006 em São Paulo e capitaneada por Lucélia Sérgio, Joyce Barbosa, Maria Gal, Mawusi Tulani e Sidney Santiago.

O primeiro espetáculo veio apenas em 2007, quando a Cia., já renomeada de Os Crespos,pôs em cena Ensaio Sobre Carolina, adaptação do clássico Quarto de Despejo (1960) da escritora mineira Maria Carolina de Jesus (1914-1977) que, sob a direção de José Fernando de Azevedo, estreou em Berlim, na Alemanha, antes de chegar ao Brasil para bem sucedida temporada que, entre passagens por capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, ficou três anos em cartaz.

Lucélia Sérgio

“Somos herdeiros do Teatro Experimental do Negro e de tantas outras Cias de arte negra que construíram os mais de 100 anos de história do teatro negro no Brasil. Estamos dando continuidade ao processo de luta por protagonismo que Abdias do Nascimento, várias atrizes e atores e outros artistas da cena travaram” explica Lucélia Sérgio, uma das fundadoras da Companhia que, neste 2020, celebra 15 anos de trajetória artística com uma mostra de repertório online em suas redes sociais, além de estrear o micro-filme Retratos de Carolina, com cenas da primeira montagem da Cia., e iniciar a preparação de dois espetáculos inéditos.

A trajetória da Companhia é, na visão de Sérgio, o resultado de uma série de políticas e ações afirmativas que vem contribuído na luta de artistas negros por espaço onde possam escrever sua própria história em cena.

“A partir disso, nós, pessoas negras, pudemos ocupar com um maior contingente vários espaços que tivemos que brigar muito para serem abertos. Na cena, tivemos que lutar contra imagens aprisionadas em estereótipos para dar mais humanidade às personagens que estávamos pondo no palco. No teatro, temos mudado a cena de forma irreversível. Temos escrito nossos textos pensando questões que nos sejam pertinentes, temos desenvolvido técnicas, métodos de interpretação, estéticas que contemplem outras referências e pontos de vista. Estamos abrindo o caminho a facão, criando nossos espaços por nós mesmos”, diz a atriz, que complementa:

“Temos levado para os teatros uma demanda enorme. São filas imensas para assistir aos espetáculos de teatro negro. Em cena, temos estudado a memória dos nossos corpos, os signos de representação. Sempre no sentido de construir uma sociabilidade imaginada na qual podemos protagonizar nossa própria história. Isso significa que sim, estamos ocupando mais espaços, mas eles não estão abertos para nós. Temos que manter o pé-de-cabra sempre escorando a porta pra garantir que teremos o direito de dar continuidade às nossas pesquisas. Dessa forma estamos convocando essa sociedade a lidar com a nossa existência e a nossa arte”.

Indicada ao Prêmio APCA por sua performance como a prostituta Norma Sueli na adaptação afrocentrada da Cia. Corpo-Rastreado para o clássico Navalha na Carne, de Plínio Marcos, Lucélia Sérgio vê no trabalho d’Os Crespos importância fundamental para a redefinição tanto das obras quanto do público nos teatros paulistanos.

A companhia em 2006, em intervenção cênica na USP

“Em São Paulo, reinauguramos uma cena Negra, junto com outras Cias, e vimos o nascimento de vários grupos de teatro negro. Nunca caminhamos sozinhos. Vimos a plateia ir tingindo-se e multiplicando-se, vemos mais artistas negros com suas pesquisas nas ruas e nos palcos, estamos solidificando uma experiência e já não contabilizamos mais o enorme número de iniciativas negras que surgem na Cidade e no interior”, conceitua.

A atriz, contudo, acredita que o papel da Cia. ainda está longe de ser o que idealizou ao lado dos companheiros de grupo há 15 anos. “Nossa história está só começando, portanto ainda temos muito pra descobrir e partilhar com nossos parceiros de arte e com o público que ajudamos a formar. Hoje temos mais espaço do que antes, mas não chegamos nem perto dos nossos sonhos, pois ainda lutamos por espaço, por reconhecimento de nossa estética, e principalmente, porque ainda estamos investigando nosso corpo, descobrindo nossos verbos. Nossos sonhos de jovens artistas ainda resistem esperançosos, queremos os prêmios, paridade nos festivais, editais e jornais, queremos ter grana pra fazer uma superprodução também, porque não? Queremos o que couber nos nossos sonhos e temos sonhados de olhos bem abertos pra não deixar a oportunidade criada escapar”.

Com um repertório que comporta obras como Anjo Negro + A Missão (2008, baseado na obra de Nelson Rodrigues), A Construção da Imagem e a Imagem Construída (2009), Além do Ponto (2011, baseado na obra de bell hooks) e Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas (2013), a Cia. tem construído trajetória importante asfaltar o caminho de novas companhias, ainda que, na visão de Sérgio, não haja ainda distanciamento histórico para considerar o pioneirismo da Cia.

“Muitos artistas nos dizem que acreditaram no ofício quando viram uma peça dos Crespos. É emocionante. Não porque nos consideramos exemplo ou pioneiros, nada disso, não subestimamos nossos colegas e tampouco esquecemos dos que abriram caminhos antes de nós. Nos emocionamos por ver nossa cultura vibrando, caminhando, florindo. É bonito ver sua história numa tese, na boca de alguém que palestra, nos relatos de quem já assistiu. Bonito porque nos alimenta, nos questiona, nos faz vivos”, diz.

O infantil Os Coloridos,

“Acredito que estamos juntos com nossos contemporâneos nos influenciando reciprocamente. Há quem fale de um novo teatro negro, eu não tenho distanciamento histórico ainda pra pensar nossa experiência como velha, não temos toda essa sabedoria ainda. Nosso trabalho está amadurecendo e espero que velhinha, a nossa arte possa ser influente e influenciada o suficiente pra continuar viva”, finaliza a atriz.

A celebração de 15 anos de trajetória da Cia. Os Crespos tem início nesta terça-feira, 25, com a live Terça Crespas, na qual a companhia convida a bailarina pernambucana Eduarda Lemos, a atriz carioca Gabriela Loran e o dramaturgo paulistano Daniel Veiga, todos artistas negros e trans da nova geração. O bate-papo acontece às 19h30.

No sábado, 29, Lucelia Sergio, Ramon Zago e suas filhas Negra Rosa e Tereza Flor apresentam a live cênica Os Coloridos, espetáculo infantil que chega às redes sociais do Tendal da Lapa. A obra também faz parte da Mostra de repertório da Cia. que estreia no dia 30 de agosto.

Os Coloridos cumpre temporada nos dias 30 e 06 e 13 de setembro, sempre às 16h. Em paralelo acontece a Trilogia dos Desmanches aos Sonhos, onde o grupo apresenta de 05 a 19 de setembro, sempre aos sábados às 21h, os espetáculos Cartas a Madame Satã, ou Me Desespero sem Notícias Suas (05/09), Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas (12/09) e Além do Ponto (19/09).

No dia 07 de setembro, as redes da Biblioteca Mário de Andrade exibem cenas do seminal Ensaio Sobre Carolina. Intitulado Retratos de Carolina, o filme celebra os 60 anos de publicação do livro Quarto de Despejo.

Por fim, a Companhia inicia o processo de ensaios do solo De Mãos Dadas com Minha Irmã, estrelado por Lucélia Sérgio, e da peça 12 Round, escrita pelo vencedor do Shell Sérgio Roveri. a montagem foi idealizada como um forma de celebrar os 50 anos de trajetória artística de João Acaiabe, convidado especial da montagem. Inéditos, os espetáculos chegam as palcos em 2021 após contenção da pandemia do novo Coronavírus.

Ambos serão encenados como resultado da 35ª edição do Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, que, além de contemplar a montagem das obras, também contará com o lançamento da 3ª e 4ª edição da Revista Legítima Defesa. Quem viver…

Cia Os Crespos

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