Sérgio Mamberti construiu trajetória artística em que relacionou afetos e a política da sua profissão

Sérgio Mamberti | Foto: Matheus José Maria

Não é à toa que a saída de cena de Sérgio Mamberti (1939-2021) na madrugada de ontem, 03, tenha gerado enxurrada de publicações nas redes sociais com lembranças e celebrações à figura do ator de 82 anos, lembrado sempre como personagem essencial na trajetória artística e política de uma série de artistas e do próprio Brasil.

Vítima de uma falência múltipla dos órgãos após ser internado para tratar de uma infecção no pulmão, Mamberti foi figura afetuosa, que não se deixou levar pela roda viva do mercado nem mesmo ao ser alçado ao panteão de um dos principais atores de sua geração. 

Entretanto, o ator não figurou apenas entre as principais figuras do teatro nacional do século XX, mas foi também força motora e central para a construção de uma linha política de oposição tanto à ditadura militar quanto às políticas de invisibilização das figuras à margem da sociedade.

Figuras essas que ele mesmo ajudou ao retratar, fosse ao dar origem ao papel de Veludo, a personagem da clássica tragédia urbana de Plínio Marcos (1935-1999), Navalha na Carne, fosse como o juiz pouco afeito às regras do jogo judiciário na icônica montagem contracultural de O Balcão, de Jean Genet (1910-1986).

Fundador do Partido dos Trabalhadores (PT), Mamberti nunca se privou do posicionamento político frente a um Brasil desigual, tampouco deixou de atuar de forma ativa em prol da valorização da cultura das artes, fosse compondo o time do Ministério da Cultura comandado por Gilberto Gil entre 2003 e 2008, fosse presidindo espaços como a Funarte ou mesmo originando a Secretaria de Diversidade e Identidade Cultural.

Entretanto, sua persona política jamais eclipsou a figura afetuosa que construiu carreira baseada, principalmente, no teatro paulistano. Mais por escolha do que por imposição, uma vez que, desde a (precoce) saída de cena de sua companheira Vivien Mahr (1943-1980), optou por permanecer trabalhando em São Paulo para que pudesse estar próximo dos filhos, o que fez com que negasse uma série de convites da TV, ma,s em compensação, pudesse solidificar carreira teatral construída com o mesmo afeto com o qual desempenhou o papel paterno.

Nomes como o amigo Plínio Marcos, o irmão Cláudio Mamberti (1940-2001) e amigos do porte de Fernanda Montenegro, Fernando Torres (1927-2008), Millôr Fernandes (1923-2012), Antônio Abujamra (1932-2015), Paulo Goulart (1933-2014), Nicette Bruno (1933-2020), Nathália Timberg, entre muitos outros, foram tão essenciais quanto presentes nas produções que, mais para a frente, o próprio Mamberti assinaria, dessa vez com a participação efetiva de seu filho, Carlos.

Foi também por amor e afeto à arte de interpretar que deixou a política para retornar aos palcos após hiato de 12 anos para se reencontrar com a memória do amigo Paulo Autran (1922-2007) e encenar obra então imortalizada pelo veterano, Visitando Sr. Green, de Jeff Baron, sob a direção de outro amigo de fé, Cássio Scapin, com quem dividiu a cena no icônico infantil Castelo Rá-Tim-Bum, exibido pela TV Cultura ao longo de mais de 20 anos.

Se em Visitando Sr. Green, Mamberti restabeleceu o contato forte com a crença judaica, a qual adotou como forma de amor à sua companheira Vivian, em Castelo Rá-Tim-Bum, o ator estabeleceu diálogo também afetuoso com o público infantil, que cresceu acostumado a chamá-lo de Dr. Victor e respeitar sua autoridade na arte de se divertir.

E assim foi. Mesmo quando encenou trabalhos de teor mais soturno, como o clássico Um Panorama Visto da Ponte, de Arthur Miller (1915-2005), Mamberti uniu política e afeto, trabalhando com jovens atores escolhidos a dedo para dividir a cena, e retratando um tema casto ao cenário político brasileiro: a delação premiada.

Assim também foi em O Ovo de Ouro, de Luccas Papp, no qual estabelecia uma relação entre o nazismo e a política contemporânea enquanto buscava a renovação a partir do olhar de amigos como Leonardo Miggiorin, o diretor Ricardo Grasson, a atriz Rita Batata, o ator Ando Camargo e o próprio autor.

Nem mesmo a pandemia do Coronavírus o impediu de seguir a toada teatral, fosse com a leitura de obras como Um Homem do Caminho, do amigo Plínio Marcos, e A Mosca Verde, de Ed Anderson, também sob a direção de Grasson, e na qual pôde reencontrar a amiga Miriam Mehler.

Embora repleto de projetos adiados pela pandemia, o ator teve a chance de estrear no universo online com a pré-montagem de A Semente da Romã, de Luiz Alberto de Abreu, obra na qual escrevia uma carta de amor à sua profissão sem jamais romantizar as pedras do ofício.

Em 2021 lançou Senhor do meu Tempo, livro de memórias escrito ao lado do jornalista Dirceu Alves Jr., em que passa a limpo não apenas suas memórias, mas também as análises acerca do Brasil de ontem, de hoje e o que deseja para o Brasil de amanhã, em todas as áreas nas quais atuou.

A saída de cena de Sérgio Mamberti cala uma das vozes mais ativas acerca dos direitos sociais, identitários, indígenas e de todas as facetas dentro do Brasil. Lúcido e atuante, o ator deixa um legado mais profundo do que o simples talento e dedicação, mas principalmente a certeza acerca da força motora que movimentou toda a sua vida: o afeto e o amor por aquilo que sempre soube fazer como poucos: viver.

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