Cia. Triptal conserva online força e frescor de montagens tradicionais ao resgatar pérola do mar de O’Neill

Sede - Foto: Divulgação

Em 2016, ao investigar a obra de Tennessee Williams (1911-1983) com a montagem de Memórias (não) Inventadas, a Cia. Triptal de André Garolli atingiu ponto de inflexão em sua já brilhante trajetória artística. Até aquele momento, o grupo já tinha montado outras grandes obras, entre elas a trilogia teatral Homens ao Mar, composta por três peças do norte americano Eugene O’Neill (1888-1953).

Em 2019, ao retornar ao universo de Williams, a companhia roçou a perfeição com a montagem de Inferno – Um Interlúdio Expressionista e, levando em consideração a apresentação da noite de ontem, 21, não tivesse a pandemia do novo Coronavírus fechado teatros e espaços culturais e impedido o contato presencial de artistas e público, o grupo conseguiria outro grande êxito com a montagem de Sede.

Escrita em 1914 pelo mesmo O’Neill a quem dedicaram três encenações, Sede é obra menos conhecida no vasto repertório do autor de Longa Jornada de um Dia Noite Adentro (1941), mas nem por isso é embarcação menor na série de obras marítimas escritas pelo dramaturgo como resultado dos anos em que passou como marinheiro em alto mar, e outros tantos em que passou envolvido com este universo em terra. 

Em Sede, o autor vai literalmente ao mar e aloca em um bote salva vidas um marinheiro negro, uma dançarina e um cavalheiro, ambos brancos, após o naufrágio de um transatlântico. Embora não exista confirmação, é possível que o espetáculo tenha sido escrito inspirado no naufrágio do Titanic, dois anos antes.

A obra, lida como um clássico O’Neill, põe as personagens frente a uma situação extrema para analisar a quebra dos dogmas sociais frente à natureza humana. À medida que o espetáculo se desenvolve, as personagens adicionam camadas cada vez menos sociais a suas ações quando se veem frente a frente com a morte eminente.

Sob a direção de André Garolli, Sede ganhou montagem online transmitida pelas redes do Teatro João Caetano, em São Paulo, em experimento cênico que, se não roçou a perfeição de sua obra anterior, manteve intacta a força e o frescor das montagens da Cia. Triptal que, neste 2020, celebra 30 anos de trajetória.

Sem grandes investidas na linguagem do teatro digital, Garolli aposta na estrutura básica da relação entre intérprete e texto. E reside aí o trunfo da montagem. Sem buscar sustentação em experimentações digitais, a direção extrai o melhor da relação ator-câmera e faz de seu elenco a verdadeira força motora da encenação.

Fabrício Pietro e Camila dos Anjos dão vida ao cavalheiro e à dançarina , respectivamente, em registros luminosos. A dupla constrói jogo de cena intenso e não se acanha em assumir as tintas fortes dos preconceitos desesperados das duas personagens que, são as desconstruções das altas figuras da sociedade, como é de praxe na obra de O’Neill.

No papel da dançarina, dos Anjos entrega uma de suas construções mais intensas como uma figura que cede à loucura e a senilidade até a morte. Parecido acontece com Pietro, que mergulha na tonalidade dúbia, percorrendo caminhos entre a lucidez mórbida e a covardia desesperada.

Contudo, é Wes Machado quem entrega uma das construções mais fascinantes desta encenação online. Na pele de um marinheiro negro, o ator alicerça sua performance no olhar, e reveza registros entre a serenidade e o desespero em busca da paz.

Fadados à tragédia, as personagens são leituras perfeitas de uma sociedade norte americana enraizada no high society do século XX, e que ainda hoje guarda resquícios de seu dinamismo social. Ponto, mais uma vez, para a direção de Garolli, que compreendeu a importância das percepções do texto e abriu mão de qualquer subterfúgio desnecessário, apostando em signos básicos.

Entre elas está o (ótimo) desenho de luz e a relação do elenco com a câmera que, embora possa ser usada em encenações do gênero como mero meio de transmissão, se torna, aqui, uma quarta personagem não premeditada.

Ao celebrar 30 anos de existência dando seu primeiro passo na linguagem digital, a Cia. Triptal triunfa por criar bem-vindo híbrido entre sua linguagem nos palcos e o teatro online sem jamais pesar a mão.

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