Coletivo O Bonde mergulha em estética hip-hop em experimento que emerge como contundente estudo social

Desfazenda - Me Enterrem Fora Desse Lugar | Foto: José de Holanda

Quando surgiu em cena com a montagem do incensado infantil Quando eu Morrer, Vou Contar Tudo a Deus, de Maria Shu, o coletivo paulistano O Bonde já fincava os alicerces da pesquisa teatral que pretendia desenvolver ao repensar os dogmas da dramaturgia e da encenação teatral moderna.

Longe dos critérios ininteligíveis do teatro contemporâneo, o grupo estabeleceu diálogo imediato com a plateia universalizando não apenas sua linguagem, mas também, e principalmente, a mensagem de pesquisas e descobertas raciais ligadas à arte preta no Brasil e ao redor do globo.

Tendo como ponto de intersecção a diáspora negra moderna e o levante de pautas anti racistas, O Bonde mergulhou em estética não-realista para contar a história do jovem Abou, um garoto da Costa do Marfim encontrado dentro de uma mala de viagens num aeroporto na Espanha por funcionários da alfândega. 

À época, em pleno ápice da crise dos refugiados na Europa, a encenação não apenas levantou questionamentos sobre a responsabilidade sócio-política dos governos brasileiros nesta pauta, como também estabeleceu questionamentos sobre as verdadeiras raízes do povo brasileiro em sua imensa maioria. 

Sem jamais abrir mão de uma estética de pesquisa teatral, Quando eu Morrer, Vou Contar Tudo a Deus foi obra que lançou no mercado a impressão de que entrava em cena um grupo capaz de redimensionar as noções sócio-culturais do teatro contemporâneo.

Em cartaz desde sexta-feira, 25, o experimento cênico digital Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar confirma as expectativas criadas com o espetáculo infanto-juvenil ao marcar a estreia do coletivo no teatro adulto e erguer pontes entre os atores e a encenadora paulistana Roberta Estrela D’Alva, que assina seu primeiro trabalho de direção fora do Núcleo Bartolomeu de Teatro, do qual faz parte há duas décadas.

Na obra, que compõe a programação do Palco Virtual, projeto encabeçado pelo Itaú Cultural, O Bonde parte de uma história real narrada em Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil, documentário de Belisário Franca que conta a infância de Aloísio Silva, homem que, na década de 1930, foi escravizado junto a outros cinquenta garotos negros na fazenda do empresário Osvaldo Rocha Miranda, e município da grande São Paulo.

A história destes 50 garotos, sequestrados de orfanatos no Rio de Janeiro, ganhou nova abordagem do dramaturgo paulista Lucas Moura, que localiza a ação também numa fazenda, mas mantida por um padre que mantém as crianças isoladas com a desculpa de salvá-las de uma guerra que, curiosamente, jamais chega às terras do sacerdote.

A obra de Moura foge à fórmula prosaica de meramente recontar a história narrada no filme de Franca e estabelece fio narrativo próprio. Nesta fazenda, quatro pessoas jovens têm também seus nomes usurpados e passam a ser chamados apenas como números: 12, 13, 23 e 40. A narrativa ganha, então, tom épico quando posiciona estas personagens com histórias distintas e relacionamentos frágeis.

Não há em Desfazenda quaisquer signos que façam supor uma opção pelo simples melodrama, ao contrário. Moura opta por contar a história em tom dramático quase narrativo, valorizado pela linguagem da chamada spoken word, que localiza os atores numa encenação rimada na cadência do hip hop.

E nesta linguagem cadente que o espetáculo cresce e tensiona a fricção da história com a (excelente) encenação assinada por Roberta Estrela D’Alva. Febril, a direção da artista constrói panorama de intensidade constante que, estivesse em mãos menos hábeis, poderia resultar maçante. Entretanto, Estrela D’Alva injeta dinamismo na obra, dosando as conexões com a linguagem digital e evitando o desgaste, já iminente no universo online.

Desfazenda – Me Enterrem Fora Deste Lugar é obra rara na qual todos os elementos dialogam com exatidão. Do desenho de luz de Matheus Brant, passando pelo figurino de Ailton Barros, e desaguando na excelente direção musical de Dani Nega, que assina duas canções inéditas para a obra, Saci e Tocar o Gado.

Mas é com base no elenco formado por Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves que a obra de fato emerge como contundente experimento cênico, que, aliando o caráter urgente e a excelência artística triunfa como um dos principais trabalhos produzidos dentro do universo online desde sua massificação.

SERVIÇO:

Desfazenda – Me enterrem Fora Deste Lugar

Data: 25 a 27 de junho (sexta-feira a domingo)

Local: Palco Virtual – Itaú Cultural

Espetáculo transmitido online via YouTube

Horário: 20h (sexta e sábado); 19h (domingo)

Preço do ingresso: Grátis

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