Fugindo ao protocolar, experimento digital sobre Maria D’Apparecida dá mergulho profundo em universo particular da artista

Maria D'Apparecida Luz Negra | Foto: Zé Luis PS

Personagem crepuscular na história cultural do Brasil, a cantora lírica Maria D’Apparecida (1926-2017) foi uma das muitas figuras apagadas ao longo dos anos a despeito de todo o sucesso internacional que protagonizou ao longo dos anos em que esteve à frente da companhia da Ópera de Paris, na França, encenando clássicos do repertório operístico ocidental.

Não raro na história do Brasil, a trajetória de D’Apparecida foi não apenas esquecida, mas apagada, o que levou a artista a um final solitário e isolado na França. O desfecho da vida desta que foi uma das principais artistas brasileiras pré-Bossa Nova é tão trágico quanto as obras que interpretava em cena e, guardadas as devidas proporções, é neste final que se estrutura Maria D’Apparecida – Luz Negra, experimento cênico digital que chegou à rede no último dia 10 de agosto, e cumpriu curtíssima e concorrida temporada no Centro Cultural São Paulo.

Escrita e estrelada por Dione Carlos, o espetáculo segue à risca o teatro desenvolvido pela dramaturga carioca (radicada em São Paulo), ao fugir dos dogmas e estruturas clássicas do teatro moderno, sem jamais aderir ao caráter ininteligível da linguagem contemporânea.

Em cena, Carlos dá vida à cantora em encenação que não busca emular gestos ou registros vocais, nem tampouco narrar a história da personagem de forma protocolar. Dividido em cinco episódios, o experimento se debruça sobre o universo de sua personagem e o processo de repatriação de sua figura frente a um Brasil contemporâneo mais afeito a resgates do gênero.

É esta construção um dos pontos mais sedutores da obra, mérito do diretor Luiz Fernando Marques, que viaja com fluência pela construção da personagem por mais de um registro. Em comunhão à dramaturgia de Carlos, a encenação traça perfil pouco óbvio de uma figura da qual se tem pouco ou nenhum conhecimento, o que permite alguma liberdade, da qual o espetáculo faz pouco uso.

É inteligente, por exemplo, que já próximo a seu desfecho, a obra se utilize de depoimento histórico do violonista Baden Powell (1937-2000) para retratar o encerramento de uma carreira como cantora lírica e início de trajetória na música popular após a personagem sofrer acidente, com seriedade evitável não fosse a cantora uma artista negra.

As tensões raciais também ganham seu próprio registro na obra, mas é inegável que a beleza plástica ao redor do retrato da relação da artista com o pintor Félix Labisse (1905-1982) abocanha um dos melhores momentos da obra.

Outro ponto inegável é a sedução da performance de Dione Carlos, atriz bissexta que não só se comprova (boa) cantora, como também constrói uma Maria D’Apparecida baseada no olhar sem necessariamente emular gestos. 

É construção pautada no tempo da delicadeza cênica, tal qual o jogo que a artista estabelece com seu principal companheiro de cena, Rodrigo Mercadante, e com a equipe, que surge já próximo ao encerramento com interpretação vivaz de tema do cancioneiro popular cubano. 

Mérito também da (excelente) direção musical assinada pelo próprio Mercadante, que também divide os vocais com Carlos em abordagens delicadas de temas como A Volta (Baden Powell/ Paulo César Pinheiro), Deixa (Baden Powell/ Vinicius de Moraes), Sermão (Baden Powell/ Paulo César Pinheiro), Tamba-Tajá (Waldemar Henrique) e Summertime (George Gershwin), além da tocante interpretação da clássica ária Habanera (Georges Bizet), construída em solo de fragilidade e insegurança vocal da atriz e cantora, que sublima a beleza do tema.

Embora peque ao não deixar necessariamente nítida a história e a figura de Maria D’Apparecida para um público não tão afeito às descobertas do Brasil profundo, Luz Negra é obra que busca lufada de ar fresco na já desgastada linguagem do teatro digital feito para o universo online.

SERVIÇO:

Maria D’Apparecida – Luz Negra

Data: 21 a 25 de agosto (exibição de um ep. por dia)

Local: Canal oficial do espetáculo no YouTube e perfil oficial no Instagram

Horário: 21h

Preço do ingresso: Grátis

Notícias relacionadas