Soturno, Meu Reino por um Cavalo impede infantilização ao adaptar Shakespeare para o universo infantil

Meu Reino por um Cavalo | Foto: João Caldas

Fundada há duas décadas pelo autor, diretor e palhaço Angelo Brandini e pela atriz, produtora e figurinista Christiane Galvan, a Cia. Vagalum Tum Tum se debruçou ao longo dos anos sobre adaptações das obras de William Shakespeare (1564-1616) a partir de duas visões: o da palhaçaria e o do teatro feito para crianças.

Em obras que sempre desafiaram os jovens (e seus pais) para além dos lugares comuns do teatro infantil produzido ao longo dos anos, com recriações óbvias e pouco inspiradas de clássicos das Disney, ou de montagens sem fôlego de autores como Maria Clara Machado (1921-2001), a Cia. Vagalum Tum Tum sempre tratou seu público infantil como adulto.

Foi assim em bem sucedidas adaptações de obras como Othelito (2006, do original Otelo, o Mouro de Veneza), O Bobo do Rei (2010, de Rei Lear), Henriques (2016, de Henrique V) e o celebrativo Shake Shake Show (2019), onde reuniram trechos de seus principais espetáculos para celebrar a obra do bardo inglês.

Mesmo em obras de teor mais trágico, como Hamlet e Macbeth, a companhia viajou com tranquilidade pelos mares da imaginação infantil ao criar as obras O Príncipe da Dinamarca e As Bruxas da Escócia, desafiando o público infantil a enfrentar seus medos e a lidar com questões como a morte, a corrupção e a construção de caráter.

Parecido acontece em Meu Reino por um Cavalo, o título mais soturno da trajetória da companhia, em que Brandini adapta e reinventa a história de Ricardo III, uma das mais sanguinárias da obra de Shakespeare, que enfoca temas como a traição, a sede por poder, o desejo de vingança e a corrupção dos poderes.

Ainda que tenha tratado destes temas sem tabus em obras anteriores, é em Meu Reino por um Cavalo que a Cia. Vagalum Tum Tum mergulha com mais fome neste universo da tragédia shakespeariana para narrar a história de Ricardo, um homem odiado por todos à sua volta, e que ajuda o irmão, Eduardo, a ocupar o trono do reino da Inglaterra.

Com uma deformidade no corpo, o rapaz se vê inconformado com o fato de estar distante da linha sucessória, e decide voltar sua atenção a eliminar aqueles que estiveram em seu caminho, a começar por seu irmão, George, preso na masmorra após videntes preverem que Eduardo seria destronado por um homem de nome com a letra G.

A adaptação de Brandini não foge à temas que, à primeira vista, podem ser considerados espinhosos para o teatro infantil. E é justamente aí que reside parte da sedução da obra. O diretor não se priva de estabelecer diálogo maduro com o público infantil, levando a plateia a uma viagem (até) confortável pelo universo shakespeariano.

O autor, contudo, tropeça na narrativa ao não conseguir manter, ao longo de uma hora, o ritmo da obra, buscando um desfecho abrupto e recheado de passagens menores – como o show e o protagonismo dado à personagem do cavalo, que, ao final do espetáculo, resultam apenas irregulares.

E este é o ponto que impede Meu Reino por um Cavalo de se sobrepor como um dos melhores espetáculos da companhia, ainda que tenha um dos elencos mais afiados de suas montagens. Estrelado por Edgar Bustamante, em um de seus melhores momentos em cena, na pele de Ricardo III, o espetáculo mergulha em estética soturna – ainda que atenue, por exemplo, a deformidade da personagem principal.

Com (boas) canções inéditas compostas por André Abujamra na pegada do rock and roll, o espetáculo se alicerça no excelente trabalho do elenco (que se transfigura em banda) formado por Christiane Galvan (em belo registro trágico), Theófila Lima (que brilha com excelente timing cômico), Demian Pinto (em momento cênico luminoso), Tatiana Thomé, Val Pires, Jhuann Scharrye e Alexandre Maldonado, além, claro, de Bustamante.

Excelentes também são os trabalhos de Galvan (assinando o figurino), Bira Nogueira (cenário), visagismo (Leopoldo Pacheco) e Lígia Chaim (no excelente desenho de luz).

Ainda que se ressinta de irregularidades da adaptação, Meu Reino por um Cavalo é espetáculo que provoca os registros excessivamente infantilizados do teatro feito para um público que, a cada geração, se mostra mais inteligente e maduro a ponto de lidar com estética e temática nem sempre retratadas com a honestidade devida.

SERVIÇO:

Data: 09 de outubro a 12 de dezembro

Local: Teatro do Sesi – São Paulo (SP)

Endereço: Av. Paulista 1313 (dentro do Centro Cultural FIESP)

Horário: 15h (sábados e domingos)

Preço do ingresso: Grátis

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